Afirmação: um cursinho popular e um sonho coletivo

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No dia 10 de abril, o cursinho popular pré-Enem Afirmação iniciou a sua segunda turma de 2017, no Colégio Estadual Júlio de Castilhos. A primeira iniciou as aulas no dia 27 de março. Nas duas turmas, cerca de 80 jovens que estudam e trabalham sonham em concluir o Ensino Médio e conquistar uma vaga na universidade. As aulas acontecem de segunda a sexta-feira, das 19h às 22h.

Em 2015, numa iniciativa do movimento social Levante Popular da Juventude, o Afirmação surge como um intensivo pré-Enem com a duração de três meses. Desde o início, é formado por professores voluntários que acreditam na importância de democratizar o acesso à Universidade: professores já formados e estudantes de licenciatura de diversas áreas. A primeira turma contou com 40 alunos. Em 2016, com 45 alunos do Protásio Alves, Júlio de Castilhos, Paula Soares, Ernesto Dornelles e Presidente Costa e Silva (escolas públicas locais), o Afirmação se consolidou como uma alternativa de cursinho popular e gratuito para os estudantes de Porto Alegre que não têm condições de pagar cursinhos privados.

Para além da divulgação online, todos os anos são realizadas passadas nas escolas para divulgar o Afirmação. Este ano, foram preenchidas 230 pré-inscrições e apesar da grande procura e demanda por cursinhos populares nas escolas públicas da cidade, ainda há muitos estudantes que desistem ou acabam evadindo, sobretudo por problemas financeiros – como a falta de passagens. No início do ano, conversamos com antigos alunos do Afirmação que entraram na universidade através das Ações Afirmativas, as conhecidas cotas sociais e raciais.

“Uma forma nova de ver as coisas”

Gabriel Farias tem 17 anos, é um jovem negro de Porto Alegre apaixonado por Teatro e que tirava as dúvidas de Matemática de todo o mundo no Afirmação. Fez a primeira e a segunda série numa escola pública no bairro Serraria, mas na terceira série conseguiu uma bolsa do governo do estado em parceria com a escola particular Madre Raffo, no Belém Novo. Eram dois ônibus para ir e dois ônibus para voltar para casa, mas ficou no Madre Raffo até à oitava série.

Depois de passar por outras escolas, foi parar ao Júlio de Castilhos no segundo ano do Ensino Médio. “O Julinho foi a melhor escola onde podia ter pisado na minha vida. Aqui eu soube aprender, soube estudar. Era a minha segunda casa”, diz Gabriel ao recordar que no passado passava mais tempo no Colégio do que em casa. A rotina era cansativa e acredita que se não tivesse conquistado a sua vaga na universidade em 2016 não iria desistir, mas passar na UFRGS, nas suas palavras, “foi um alívio”. Entrou na Federal do Rio Grande do Sul pelo Enem e pelo Vestibular, em Geologia e em Teatro. “Na família da minha mãe eu vou ser o primeiro a entrar na faculdade. A federal é feita pra gente. O Afirmação meio que me abriu as portas porque eu pude escolher”, acrescentou.

Em 2016, o Colégio Estadual Júlio de Castilhos foi ocupado pelos estudantes, um deles o Gabriel. Durante toda a ocupação as aulas do Afirmação continuaram, eram abertas a todos os estudantes e o Gabriel praticamente nunca faltou. Já tinha feito o Enem em 2015 e quando perguntamos de que forma o Afirmação contribuiu para conquistar a vaga na UFRGS conta que, para além do cursinho ter contribuído no seu amadurecimento, “com o Afirmação veio um ensino mais democrático, uma forma nova de ver as coisas. Aquele conhecimento que a gente leva para a vida, como construção do ser humano”. Sobre os professores diz que “eram muito preocupados com o Brasil, com a Política, o estado de cada um ali e isso foi muito bonito. Essa coisa de alteridade que a gente viu ali dentro e sentiu”.

Escolheu o Teatro porque “era um sonho e não vou me aposentar mesmo”. A mãe, que o ensinou a ler, preferia que tivesse escolhido Geologia, mas Gabriel não abdica do sonho por questões financeiras: “é muito bom poder fazer o que tu ama”.

Mesmo antes de entrar na Universidade como aluno cotista, em setembro de 2016, Gabriel participou do movimento contra a revisão da Lei de Cotas na UFRGS e acredita que “devemos ficar alerta”, num momento em que somamos perdas em relação à Educação pública brasileira.

“No fim tudo valeu a pena”

A Victória Bonifácio está no terceiro semestre de Relações Internacionais na UFRGS. Em 2015, integrou a primeira turma do Afirmação e entrou de primeira na Universidade. Realizou um sonho e agora vai trilhando o seu caminho no sentido de realizar muitos outros. Estudante de escola pública e de baixa renda, entrou na UFRGS pelo sistema de cotas.

Morava na Zona Sul – onde ainda mora – e saía de casa de manhã bem cedo para ir até ao Julinho, colégio onde estudava. De tarde fazia um estágio na Prefeitura, num setor da Lomba do Pinheiro. No final do dia, voltava para o Julinho para não perder as aulas do cursinho. “Chegava umas onze horas em casa. Era bem puxado, dormia pouco, mas no fim tudo valeu a pena”, diz Victória.

No ano de 2015, os professores do Rio Grande do Sul entraram em greve e Victória, que nunca teve a possibilidade ou a oportunidade de pagar um cursinho privado, recorda: “fiquei um tempo sem professores, um mês sem aulas, que coincidiu com o período em que entrei no Afirmação. O Afirmação foi o que realmente me ajudou a passar no Vestibular”. Foi pelo Vestibular que a Victória conquistou a vaga e acredita que embora Enem e Vestibular “sejam provas diferentes, algumas questões que eu não tinha nem visto na escola eu vi no Afirmação e são questões parecidas”.

O fato de serem voluntários fez com que Victória admirasse os professores do Afirmação: “eles também tinham a vida deles e sempre dispunham de um tempo para nos ajudar”. Para a Victória é uma questão de acumular mais conhecimentos, mas acrescenta: “quem sabe daqui a um tempo eu vou poder contribuir com o Afirmação”.

A estudante de Relações Internacionais acredita que o seu curso ainda é bastante elitizado, “mas tem mais cotistas como eu”. Defende que o importante é não desistir, “porque um dia tu vai conseguir. Nunca deixe que alguém diga que não vai conseguir. Se eu tou aqui, qualquer um consegue”.

“O número de vagas para cotistas é extremamente baixo”

William Abreu acabou de fazer 19 anos e entrou em Publicidade e Propaganda na PUCRS, através do Prouni – Programa Universidade Para Todos. Depois ter encaminhado os papéis da matrícula na PUC, descobriu que também tinha entrado em Ciências Sociais na UFGRS “na segunda chamada ou na lista de espera do SISU”, não recorda. “Quando eu vi que eu tinha passado pelo Prouni, que era tipo a última coisa que eu tinha me inscrito, eu fiquei muito feliz”, acrescentou o jovem da Lomba do Pinheiro, que concluiu o Ensino Médio no Colégio Estadual Paula Soares.

Para William, que frequentou o Afirmação em 2016, “cursinhos populares auxiliam a população que não tem acesso a outros meios de estudo” e são um “super bônus, auxiliando muito o ensino público, porque ele é desfasado”. O que aprendeu no Afirmação conseguiu conciliar no Enem e no Vestibular, porque “as matérias e assuntos eram as mesmas”. Enquanto estudante, jovem, negro e da periferia, William acredita que os cursinhos e os professores voluntários “são um elo para as pessoas que não são visadas pelo Ensino Superior, que é o pessoal da periferia, da escola pública. Dizem a estas pessoas que também é possível para elas entrar na Universidade. Dão um impulso para quem não tem condições”.

Com vontade de um dia também dar esse empurrão, para que mais jovens como ele entrem na Universidade, William defende que cotas são “uma política de reparação histórica com o povo negro, mas o número de vagas para cotistas é extremamente baixo”. Ainda acrescenta que, dentro da PUC, “tem um pessoal que sofre preconceito mesmo, às vezes só por ser de baixa renda”.

Em relação ao Afirmação, William deixa ainda um recado para que os jovens “aproveitem cada informação e se puxem ao máximo. No Afirmação tu pode aproveitar várias coisas que às vezes durante o período de aula ou durante o dia não tem como. Tem professores maravilhosos, que dão dicas maravilhosas”.