Venezuela: a batalha de nossa época

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Em 1936, a vitória da Frente Popular na Espanha pôs fim a monarquia e instaurou a República popular. Com apoio e presença de amplos setores da esquerda (anarquistas, comunistas, socialistas, democratas) construiu um programa de reformas populares profundas. Sem dúvida, essa vitória levou a reação imediata dos restauradores monarquistas, frações burguesas ameaçadas pelas reformas e das forças nazifascistas que, nesta época, já detinham o poder na Alemanha e na Itália. A guerra civil não tardou e seu desfecho, como sabemos, foi trágico: a reação, apoiada militarmente pela aviação da Alemanha nazista e por soldados da Itália fascista, derrotou a República em 1939 e as forças revolucionárias sofreram perdas aos milhares numa das mais sangrentas páginas da história da luta dos povos. No poder, o general fascista Franco ficaria até 1975.

Entretanto, foi em meio a esse horror que homens e mulheres comprometidos com a revolução deram um de seus maiores exemplos de unidade e solidariedade mundial: as Brigadas internacionalistas de apoio e combate que, segundo registros, chegaram a quase cem mil pessoas que partiram para lutar na Espanha.

Mas o que esse distante capítulo da luta revolucionária do século 20 tem a ver com a América Latina do século 21? Tudo. Certamente qualquer comparação entre eventos históricos podem levar a grandes equívocos, principalmente o de se pensar que a história se repete da mesma forma. Porém, o importante é resgatar as dinâmicas que levaram a estes eventos bem como suas consequências no plano da luta de classes e, nesse caso, a derrota da Espanha revolucionária foi o prelúdio da Segunda Guerra Mundial e demonstrou todo o horror que a reação nazifascista promoveria. A situação atual da Venezuela também guarda essa característica: uma derrota do seu processo revolucionário irá mudar o quadro da luta de classes em nossa América Latina. Em 2017 estamos diante de uma das maiores ofensivas imperialistas das últimas décadas em nosso território. Um por um, os governos que no início do século 21 assumiram, com maior ou menor intensidade e em que pese os erros cometidos, uma agenda progressista e de reformas estão sendo golpeados e retirados do poder. A experiência de maior profundidade desses governos foi a Venezuela e seu projeto de revolução bolivariana, liderado pelo comandante Hugo Chávez. Numa criativa combinação da questão nacional com o horizonte socialista, não só a renda do petróleo foi colocada a serviço das necessidades do povo venezuelano e latino-americano, como também se incentivou e impulsionou a organização popular e a formação de uma consciência revolucionária e fortemente anti-imperialista, algo que ficou pendente em outros processos, como o brasileiro.

Em alto e bom som se proclamou que o destino da Venezuela era o socialismo e com firmeza se construía, desde as bases populares, a firmeza de que o processo não avançaria sem enfrentar seu inimigo principal: o imperialismo. Não é necessário falarmos aqui de qual foi a reação dos inimigos: desde golpe e sequestro do presidente Chávez em 2002; negação de participação nas eleições; sabotagem econômica e política, dentre outras coisas. Mesmo assim, não conseguiram destruir o processo revolucionário e nem destituir o governo e, desde o início de 2017, adotaram a estratégia de terra arrasada: incendeiam o país para governar o que sobrar. Sem demora colocaram a Venezuela as portas da guerra civil. Sem demora as corporações que controlam a economia e a informação mundial organizaram uma campanha de guerra econômica e de mentiras e deslegitimação do governo venezuelano. A direita latino-americana, o imperialismo e a mídia cumprem seu papel. Mas e a esquerda latino-americana?

De forma inacreditável, em um momento crucial da luta de classes no continente, parte dela vacila, por incompreensão ou irresponsabilidade, demostrando que ainda não superamos ideologicamente os impactos das derrotas sofridas desde os fins dos anos 80. Adotam, sem questionar, o discurso da reação de que na Venezuela está posta uma ditatura. Mas qual ditadura convoca uma Assembleia Constituinte e chama o povo para decidir seus destinos? Reproduzem que o governo reprime manifestantes, como se estes fossem os heróis da liberdade, mas esquecem que estes heróis usam métodos de terrorismo ensinados pela CIA para derrubar governos pelo mundo, são heróis que elogiam o ditador chileno Augusto Pinochet, heróis que queimam hospitais e pessoas consideradas chavistas. Tudo isso em nome de uma suposta democracia universal, abstrata, que clama por eleições livres, desde que os desejos populares não contaminem tais eleições. Não compreendem que a derrota da revolução venezuelana é o aprofundamento da reação imperialista no continente, é o prenúncio do aumento da violência e cerco sobre a esquerda continental. Não nos esqueçamos que o governo estadunidense já colocou sobre a mesa a opção da invasão militar e que este mesmo governo está sendo conivente com grupos nazifascistas que promoveram a nova MARCHA SOBRE ROMA* ocorrida nos Estados Unidos a poucos dias.

A Venezuela é a Espanha de nossa época. Seu exemplo de resistência em uma conjuntura tão difícil para as forças populares; sua incansável denúncia da interferência imperialista dos Estados Unidos em nosso continente; a bravura de seu povo que enfrenta uma brutal violência e mesmo assim se coloca na linha de frente do processo, tudo isso por si só já bastaria para que todas as forças de esquerda e progressistas se colocassem ao seu lado. Defendê-la, da mesma forma que milhares de revolucionários e revolucionárias fizeram com a República espanhola é tarefa de quem luta pela libertação da América Latina. Não é hora para vacilos, deixemos que os erros e desvios sejam corrigidos pelo próprio povo venezuelano. É tempo de aprofundarmos nossa formação e consciência revolucionárias, de exercitar de fato a solidariedade e o internacionalismo entre os povos, de abandonar idealismos e romantismos sobre processos reais de transformação e, só assim, teremos a chance de derrotar nossos inimigos.
* Marcha fascista ocorrida em 1922 na cidade de Roma, Itália, que contou com milhares de participantes e marcou a ascensão ao poder do ditador Benito Mussolini