Quando nos afirmarmos marxistas estamos dizendo que a história ocupa um lugar privilegiado nas nossas análises. Privilegiar a história é privilegiar o concreto, é privilegiar o que ocorre na materialidade não como algo estático, e sim como produto da luta de classes, portanto, sempre em movimento. É assim que Marx e Engels iniciam o Manifesto do Partido Comunista, “a história da humanidade é a história da luta de classes”.
Ao me propor explicitar sobre o uso da bandeira lésbica, privilegiarei portanto a história e seu movimento no bojo da disputa entre as classes sociais.
Chega o mês de agosto e os polêmicos debates começam a surgir. Ocorrem recorrentemente revisionismos que privilegiam ora a cultura, ora os símbolos, ora a linguagem, fazendo análises que desconsideram o processo histórico pelo qual se dá seu uso, analisando apenas aquilo que se vê, e não o que está por trás.
Quando falamos de bandeiras, estamos falando de simbologias, símbolos e signos. Os símbolos, pra Bakthin, um importante linguista marxista, são produto da interlocução entre realidade material e ideologia; para exemplificar: o dinheiro é um símbolo do capitalismo, a foice e o martelo do comunismo, a cruz das religiões cristãs… Todos estes produzem uma afinidade e identidade comum nas relações entre as pessoas e cada uma possui um interesse distinto.
Como assim um interesse distinto? Existem símbolos que são utilizados pela classe dominante para dominar e explorar, fazendo com que a classe operária acredite que se vender muita caneta bic, como Silvio Santos, virará um multimilionário. Por outro lado, existem os símbolos, como a bandeira lésbica, que produzem uma identidade entre mulheres que se relacionam com outras mulheres como identificador das condições de opressão, afim de juntas, superar esse lugar. No entanto, esses símbolos vão ser distribuídos ao povo de forma diferente também, ao vivermos no capitalismo, quem distribui o conteúdo abrangendo o maior número de pessoas é quem tem mais dinheiro, portanto, a burguesia, e é assim que se produz uma ideologia dominante.
Essa ideologia dominante produz apagamentos, e é o que acontece com a bandeira lésbica. Mais um capítulo que oculta a história de resistência e luta das mulheres e explico o por quê:
Em 2010, no Tumblr, um grupo de pessoas diziam que não existia uma bandeira lésbica, e que portanto, ela deveria ser criada.
A primeira versão veio cheia de tons de rosa e uma marca de beijo no canto superior, com o nome lipstick lesbian (lésbica de batom), representando as diferentes performances da feminilidade ou desfeminilidade de mulheres lésbicas. Com o tempo, retiraram a marca do beijo, mas as cores se mantiveram, sofrendo pequenas alterações, em 2017.
O rosa se manteve: para as lésbicas femininas, o laranja/marrom: para as lésbicas desfeminilizadas, as caminhoneiras. Mas devemos entender que uso das cores, enquanto símbolos, são agregados de sentido e história.
O rosa não é o rosa, o rosa é a feminilidade, que é produto do patriarcado, do capitalismo e do racismo, que produz disforias, violências e consumos que padronizam as mulheres, portanto, não deve ser reforçado. As feministas da Coreia do Norte, vem há anos construindo esse debate de desfeminilização das mulheres, enquanto um conjunto de opressões que beneficia o patriarcado e o capitalismo.
O fato da bandeira de listras ser usada pelas grandes empresas, redes televisivas burguesas, manifesta e sustenta, através de símbolos, os interesses burgueses e patriarcais, que além de reforçar os padrões de gênero, apagam a história das mulheres lésbicas.
A bandeira roxa, com labrys e um triângulo preto invertido é nossa bandeira. E é nossa bandeira porque é produto da luta lesbofeminista. Cada símbolo foi usado pelas mulheres lésbicas desde a década de 70, mesmo que só em 1999 eles tenham sido catalogados e passado a assumir uma identidade comum em forma de bandeira.
O triângulo invertido, o símbolo mais polêmico da bandeira, foram uma forma de identificar as prisioneiras e os prisioneiros nos campos de concentração em razão da religião (roxo), dos ideais políticos (vermelho), da orientação sexual (rosa para os gays e preto para as lésbicas) e demais cores que, junto com a tatuagem de números, serviram para marcar essas pessoas. O triângulo preto também era usado nos ciganos e nas mulheres rebeldes, como as feministas e grevistas.
Resgatar o triângulo preto invertido é honrar a memória dessas mulheres lésbicas que abriram caminho para que nós pudéssemos amar outras mulheres hoje. Assim como o termo “sapatão”, usado de forma pejorativa e como justificativa para tortura durante a Ditadura Militar, o ressignifiquemos como mensagem de orgulho.
O lábrys, símbolo mais difundido no mundo pelas lésbicas, eram as armas utilizadas pelas guerreiras Amazonas, e também um dos símbolo das sociedades matriarcais.
Já a cor roxa é usada pelas lésbicas desde a década de 1970, depois de um rompimento com o movimento feminista, a partir da criação de um amplo grupo chamado “Ameaça Lavanda”, que interrompeu o Segundo Congresso para Unir Mulheres (organizado pela NOW) apagando as luzes do local, tomando os microfones e distribuindo o manifesto “A mulher que se identifica com a mulher”.
Esse manifesto é um marco do movimento lesbofeminista ao afirmar que as lésbicas estavam na vanguarda da luta pela libertação das mulheres.
Assim, o uso da bandeira roxa com labrys é o reconhecimento da história da luta lesbofeminista da década de 70 e também, pra além da representação do uso de simbologias históricas, é ter justeza na análise, que não deve analisar signos e símbolos na sua pureza, e sim, os compreendendo enquanto produto social, material e portanto, ideológicos.