“A ilegalidade e criminalização do aborto servem também para legitimar a morte e extermínio do povo negro.”
O aborto sempre fez parte da história das mulheres.
O aborto esteve presente na história das nossas ancestrais e das mulheres antigas, bem como das mulheres das gerações de nossas família, ainda que em segredo. Ao longo dos séculos, fomos cada vez mais afastadas da terra, das plantas e do conhecimento sobre nossos ciclos: o capitalismo-patriarcal-racista se firmou enquanto sistema retirando das mulheres o poder sob seus corpos e suas vidas, negando sua autonomia para dominá-las e explorá-las.
Na estrutura da sociedade capitalista-patriarcal-racista, o corpo das mulheres passou a estar à serviço da lógica da produção, sendo sua tarefa na divisão sexual do trabalho servir ao trabalho doméstico e de cuidados, da manutenção do lar e da vida humana, cumprindo com maestria os papéis de mãe e esposa. Se trata de um corpo da reprodução, da maternidade, corpo que gera mão de obra e deve estar à serviço dos interesses do Estado. Especialmente para as mulheres negras, trata-se também de um corpo que está ali para satisfazer os desejos sexuais dos homens e poder ser violado pelo estupro, assim como domesticado e amedrontado através da violência.
É importante retomar a formação da sociedade brasileira e o passado de escravização das mulheres negras, a fim de compreender de que forma serve ao Estado a criminalização e ilegalidade da prática, bem como as mortes das mulheres negras e pobres, principais vítimas da clandestinidade, uma vez que recorrem a métodos perigosos e desumanos. No período da escravidão, o aborto das mulheres negras hora acontecia provocado pelos abusos, das violências e açoites que as mulheres recebiam dos senhores, a partir da ideia de que a mulher negra era uma mercadoria, e hora se refletia como um ato de resistência. O aborto também era enxergado como uma salvação para que seus filhos não vivessem a mesma vida de miséria e exploração: “a colônia produziu muito mais que cativos, fez heroínas que pra não gerar escravos matavam os filhos”, como canta Yzalú. Assim como fomos arrancadas de nossas terras, comunidades, negadas ao direito de construir famílias, historicamente nos fora arrancado a autonomia sobre nossos direitos sexuais e reprodutivos, a realizar nossas escolhas e construir nossas trajetórias.
A esterilização das mulheres negras e pobres já fez e faz parte das políticas de higienização e limpeza social: só podemos reproduzir quando é bom para o sistema, a partir dos interesses do Estado. Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres sempre foram controlados pelo patriarcado, pelo capitalismo, pelo racismo e pelo Estado, onde a autonomia sobre sua escolha acerca da maternidade, do seu futuro e tempo-vida, fora historicamente negado.
Cerca de um milhão de abortos são realizados por ano no Brasil. As mulheres negras e brancas, jovens e mães, trabalhadoras, alfabetizadas ou com doutorado, do campo e da cidade, de todas as classes sociais, abortam. Nas periferias, os homens negros jovens estão morrendo de tiro pela polícia e as mulheres negras estão morrendo na clandestinidade dos abortos, na negação e desumanização do atendimento quando recorrem aos dispositivos de saúde do Estado.
A ilegalidade do aborto e sua criminalização servem também para legitimizar a morte e o extermínio do povo negro. Se trata de uma condenação às mulheres: somos condenadas à maternidade quando está infelizmente não parte de nossa escolha; somos condenadas à violência e ao feminicídio; somos condenadas ao trabalho precarizado; somos condenadas à miséria, à exclusão, à exploração e à morte.
Em tempos de golpismo, projetos de lei conservadores e que representam retrocessos na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, nos casos em que o aborto é legalizado – tal qual o estupro -, como o Estatuto do Nacituro, o PL 5069, estão sendo desengavetados e voltando com força, reflexo de um governo e setores da burguesia que representam um projeto machista, misógino e conservador para o povo brasileiro.
Legalizar o aborto é pela vida das mulheres!
Em nenhum momento podemos ter medo de afirmar isso e construir lado a lado com o povo, com as mulheres do campo e da cidade como levantar essa bandeiras nas periferias, igrejas, centros urbanos, escolas, postos de saúde, dentro de casa, e conseguir estabelecer diálogos em defesa do aborto.
Precisamos agitar e propagandear a legalização e descriminalização do aborto como uma questão de autonomia e vida das mulheres, especialmente das mulheres negras e pobres da classe trabalhadora. Se trata de uma pauta do feminismo popular que precisamos construir diariamente para dentro e fora das organizações e movimento de juventude, para a construção de um projeto popular para o povo brasileiro, na transformação da sociedade e construção de novos valores e práticas, onde as mulheres sejam protagonistas de suas vidas e verdadeiramente livres!
Caroline Anice – Levante Popular da Juventude BA