Giovani del Prete* e Mariana Davi Ferreira**
Neste sábado, 07 de novembro, foi anunciada pela imprensa a vitória de Joe Biden em uma das mais disputadas eleições presidenciais dos Estados Unidos. Desde então, o processo vem sendo questionado e deslegitimado pelo opositor, Donald Trump, que defende a tese de uma suposta fraude eleitoral que o teria levado a derrota. A falta de um órgão federal que centralize os resultados das eleições tem sido um campo fértil para a narrativa dos Republicanos de que houve fraude no pleito. Segundo pesquisas veiculadas pela mídia estadunidense nesta semana, ao passo que 90% do eleitorado democrata acredita nos resultados anunciados, ao menos 70% do eleitorado republicano afirma que houve fraude nas eleições.
O mundo inteiro está de olho nos rumos desse processo eleitoral. Sendo os EUA um dos principais atores na geopolítica, o resultado dessas eleições tem implicações para os povos de diversos países. Para as organizações da classe trabalhadora, é essencial saber o que esperar do imperialismo sob o comando de Biden. Por isso, entender o que acontece em Washington é um desafio que se sobressai no caso do Brasil, tendo em vista que Bolsonaro estabeleceu forte relação com o candidato derrotado, Donald Trump.
Diante desta conjuntura, algumas sínteses iniciais podem ser afirmadas: (1) O sistema eleitoral dos Estados Unidos é um dos mais arcaicos e anti-democráticos do mundo. (2) A polarização política foi a marca desse histórico processo eleitoral. (3) Trump foi derrotado, mas extrema-direita se fortaleceu durante seu mandato, afinal Trump recebeu 10 milhões de votos a mais do que nas eleições de 2016. (4) Há uma tendência do governo Biden continuar com a mesma política imperialista, olhando para China como o principal inimigo da hegemonia americana. Além disso tudo, cabe a nós também entendermos como ficará o governo Bolsonaro a partir da posse de Biden no ano que vem.
Se Biden venceu, por que continuamos a falar em Trump? A transição não garantida.
Vamos aos fatos: eleições acirradas durante uma pandemia, população polarizada, um candidato de extrema-direita com um discurso de deslegitimação da eleição, um sistema eleitoral no qual os estados possuem autonomia para definir regras próprias para contagem dos votos, a judicialização do pleito em alguns estados, recorde de comparecimento às urnas, com 144.905.823 de votos. Mais do que eleger Biden, que até agora confirma 290 votos do colégio eleitoral e 78 milhões de votos populares, a maioria do povo estadunidense disse NÃO ao racismo, xenofobia e machismo de Trump. Esse foi o “combo” no qual Biden foi eleito com uma margem estreita de votos. Todos esses elementos fazem dessas eleições um momento histórico.
A vitória de Biden, um candidato da ala conservadora dos Democratas, foi possível graças à mobilização dos setores mais progressistas e à esquerda dentro e fora do Partido Democrata que se engajaram com a missão principal de derrotar Trump, com destaque para o voto da população negra. Dados do Socialist Project informam que 53% da população entre 18 e 29 anos votou – o que provavelmente é a mais alta participação da juventude em eleições na história dos Estados Unidos. A eleição, de fato, mobilizou amplos setores da sociedade. Outro elemento inédito foi a eleição de uma mulher afro-americana como vice-presidenta, Kamala Harris. Angela Davis argumentou que ela tem pontos problemáticos em sua carreira como promotora, mas que “é uma abordagem feminista estar apta a trabalhar contradições e estar apta a conviver com elas. Eu penso que o voto se tornou muito mais palatável”.
Entretanto, sendo um político de direita, há uma tendência que Biden construa um governo de conciliação política. O discurso do futuro presidente é voltado para setores mais moderados, buscando “unificar o país” e “governar para todos os americanos”. O que algumas análises têm ignorado, porém, é que Biden irá governar para a classe dominante e e não para as grandes maiorias que o elegeu. Não há um programa de governo voltado para resolver os problemas da classe trabalhadora, que exigiria reformas estruturais no país, como um sistema universal de saúde e educação e a reforma policial. Por isso, cabe a esses setores progressistas disputarem ao máximo o programa do novo governo. Mas antes, há um dilema ainda imprevisível. Como será a transição para o governo Biden, tendo em vista que Trump não aceita a derrota?
Biden ganhou nas urnas, mas Trump e seu empenho em desgastar a legitimidade do processo eleitoral continua presente nas manchetes dos jornais, esticando a corda da polarização política dessa eleição. O cenário é complexo, tendo em vista que essa eleição também funcionou como um “plebiscito” de avaliação do mandato de Trump que parece ter tido seu governo aprovado por muitos americanos, já que teve 10 milhões de votos a mais do que na eleição de 2016. A grande mobilização da base de Trump durante a campanha nos faz recordar as eleições presidenciais de 2018 no Brasil. Fakenews, mensagens de números desconhecidos no Whatsapp e Twitter fizeram parte das ferramentas de campanha de Trump, assim como da campanha que elegeu Bolsonaro. Dessa forma, na análise da política americana, o legado do governo Trump e dessa eleição não podem ser menosprezados. Além de uma sociedade extremamente polarizada, a base reacionária, embora derrotada eleitoralmente, saiu mais articulada e com mais força social. Desta forma, podemos dizer que Trump é responsável pela consolidação de um programa racista, xenófobo, machista e ultranacionalista para o partido Republicano. A base do eleitorado republicano foi ainda mais deslocada para o campo da extrema direita e isso repercutirá em todo o mandato de Biden, já que os Republicanos elegeram 27 dos 50 governadores e os Democratas não conseguiram atingir uma maioria expressiva na Câmara e no Senado.
O que esperar do imperialismo sob comando de Biden?
Além de todos os dilemas domésticos, é necessário entender o que muda e o que não muda na política externa estadunidense sob o comando de Biden. O Estado americano continua a ser imperialista, o que se altera (ou não) são as balas usadas por Washington – parafraseando Vijay Prashad. Em entrevista ao American Quarterly, em 11 de junho de 2020, Biden afirmou que irá pressionar a queda do governo Maduro na Venezuela; o interesse em investir no combate à corrupção na América Latina, que, na verdade, significa “financiar movimentos reacionários para dificultar a organização da esquerda na região”; além disso, falou em fortalecimento do Sistema judiciário e Estado da lei nos países sul-americanos, que no plano da ação consiste em financiar e impulsionar uma politização dos Judiciários, como ocorreu na Operação Lava Jato, para criminalizar a esquerda.
Além da América Latina, Biden continuará a guerra contra a China, ainda que por meios diferentes. Vijay Prashad explica que as táticas de Trump em promover a guerra contra a China eram mais diretas, sem oferecer tanto fortalecimento aos aliados do Atlântico Norte, enquanto Biden procurará fortalecer a “liderança americana”, isolando a influência chinesa na América Latina, ao mesmo tempo em que fortalecerá os parceiros europeus para que diminuam sua dependência energética da Rússia e Oriente Médio, conformando um bloco político e econômico do Atlântico Norte.
Se comparada à política externa de Trump, a reaproximação com a Europa e com o Japão será concretizada via organismos multilaterais. É aqui que entram as promessas de campanha de Biden com a retomada do Acordo de Paris, do TPP (acordo internacional de propriedade intelectual) e do Acordo com Irã sobre o programa nuclear.
Dessa forma, a abordagem de Biden favorecerá a projeção de poder dos Estados Unidos em dois níveis. Do ponto de vista interno, haverá a defesa do Vale do Silício, das gigantes da tecnologia GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft), as quais têm grandes preocupações com o avanço tecnológico chinês (vide guerra sobre 5G, Tik Tok e Huawei), ao mesmo tempo que demanda uma política protecionista em relação às vantagens de mercado que as empresas ocidentais ainda têm em relação às empresas asiáticas (China e Coreia do Sul, por exemplo). Já do ponto de vista externo, Biden tem uma visão de reposicionamento da liderança americana a partir do fortalecimento de seus parceiros do Atlântico Norte.
O que será de Bolsonaro sem Trump?
Ao falar em política externa, a relação Trump-Bolsonaro não pode ser lida como uma aproximação entre dois Estados nacionais, não significou uma aliança entre o Estado brasileiro e o Estado americano. É uma relação contingencial entre dois presidentes que possuem afinidade política (ambos de extrema-direita, negacionistas em relação à pandemia, xenófobos, reacionários). Mas que no plano concreto representa uma submissão passiva explícita do Brasil em relação ao imperialismo estadunidense. Se Bolsonaro achou que o Brasil obteria vantagens dessa relação com Trump, a história já mostrou que não. O Brasil abriu mão dos benefícios dados a países em desenvolvimentos no âmbito da OMC em troca do apoio dos EUA a sua entrada na OCDE. O que aconteceu? Trump não apoiou a entrada do Brasil e sim as candidaturas da Argentina e da Romênia. O que Bolsonaro conseguiu foi entregar o mercado da soja brasileira aos estadunidenses, ao passo que só recebeu promessas vazias de Trump.
Bolsonaro tomou partido nas eleições americanas, quebrando mais uma tradição da diplomacia, e afirmou o apoio à candidatura de Donald Trum. Com o anúncio da vitória do candidato democrata, no sábado (07), só Brasil e Suriname, entre os países sul-americanos, não cumprimentaram Biden pela vitória – gestos simbólicos como esse contam muito na diplomacia. Para o Brasil, é provável que Bolsonaro adote uma retórica supostamente nacionalista em relação ao governo Biden, mesmo que na prática siga cumprindo seu papel de entreguista. Nesta última semana já tivemos uma clara demonstração do que vem pela frente. Em um de seus discursos, reclamando da ameaça de ingerência do imperialismo dos Estados Unidos de promover embargos contra o Brasil se Bolsonaro não proteger a Amazônia, o presidente esbravejou “só diplomacia não dá, tem que usar pólvora, né Ernesto?”. O mundo gira, não é mesmo? O mesmo Bolsonaro que é fiel funcionário de Trump ao endossar o criminoso bloqueio dos Estados Unidos contra a Venezuela, é o mesmo Bolsonaro que nesta semana falou grosso, ameaçando de guerra os Estados Unidos, quando a bala de Washington mirou o Brasil. Enfim, a hipocrisia.
É preciso estar atento aos próximos passos do imperialismo estadunidense e do nosso presidente. A política externa brasileira parece continuar com a posição de subordinação passiva ao imperialismo, com Trump ou com Biden. Pra nós, sem ilusões, Bolsonaro deve seguir com uma política entreguista ainda que adote uma retórica de defesa de nossa soberania frente ao multilateralismo imperialista de Biden. Fiquemos atentos aos próximos acontecimentos en Nuestra América.
*Bacharel em Relações Internacionais pela UFABC e militante internacionalista.
**Doutoranda em Ciência Política pela Unicamp e militante do Levante Popular da Juventude.