Existem lugares que por se encontrar em sítios remotos, possuir climas inóspitos ou por não ter certos serviços públicos, não são atrativos para muitas pessoas. La Higuera é um deles. Lugar onde só chega quem realmente tem um autêntico interesse em conhecer.
Uma longa estrada de terra, entre montanhas, na qual as curvas vem uma atrás da outra, em conjunto com uma inclinação íngreme. Um clima seco que produz sulcos tanto na pele como no chão, chuvas só em um mês do ano, o mesmo mês onde se pode conseguir alguma fruta. O sol divide o dia em dois, toda atividade ao ar livre devem ser feitas antes das 11 da manhã ou após as 4 da tarde. Água, até recém começada a tarde e energia elétrica não existe. Internet, wi-fi, sinal de telefone não são conhecidas lá. Lugar onde fica que realmente tem um autêntico interesse em descobrir.
Um povoado empoeirado mais desses perdidos no meio da nada, com quase 2.000 metros de altitude, que ninguém tivesse conhecido se não for por que lá, na escola do povoado, uma das personalidades mais transcendentes do século XX foi assassinada: Ernesto “Che” Guevara.
Desde a pequena praça, à primeira vista podem-se visualizar três brigas do guerrilheiro nascido em Rosario, na Argentina. A nova escola primária, que assim como a maioria das casas e armazéns tem murais ou grafites feitos por viajantes e ativistas sociais de todo o mundo que chegaram a esta terra onde a presença da morte do Che os faz passar várias horas em ônibus raquíticos, por estradas de terra desenhadas em grandes morros cobertas com vegetal de terra seca – colmeias e arbustos- que secam a pele apenas de ficar perto da janela.
É que, embora existam repetidas promessas de asfalto e melhorias na estrada, a viagem entre Valle Grande – a cidade mais próxima – e La Higuera são umas longas 3 horas onde o sol é onipresente, somente interrompido por algumas pequenas cidades, como Pucará, auto chamada “a capital do céu”, que tanto no seu escudo como no posto de polícia mostra a fotografia mundialmente famosa do homem da estrela que o fotógrafo cubano Alberto Korda tirou na Praça da Revolução de La Habana.
A 20 metros da praça da cidade está o Museu Comunitário “La Higuera”, construído sobre a demolida escola onde, na segunda-feira 9 de outubro de 1967, após receber a ordem de La Paz e Washington, as balas do sargento Mario Terán bateram primeiro no antebraço e na coxa de Guevara para depois, numa segunda execução após o próprio Che ordenar que “apontasse bem”, perfurar o pescoço do líder guerrilheiro. O relógio marca 15 minutos para a 1 da tarde, Che estava dessangrando quando o sargento Bernardino Huanca entra no quarto, lhe dá uma chutada que o deixa com a boca para a cima e, a menos de um metro de distância, dispara direto ao coração. Uma hora antes, tinham levado Che para fora do lugar para tirar-lhe algumas fotos. Muitos vizinhos do povoado têm aquela lembrança. Lá, dentro desse quarto, hoje não há mais espaço livre nas paredes. Como se tratasse de um santuário de alguma divindade pagã, numerosas mensagens, agradecimentos, fotos, bandeiras e palavras lotam as paredes como se fosse o bem conhecido bar de La Habana “La Bodeguita del Médio”.
Ninguém na aldeia ou na área sabia quem era o Che Guevara. Um lugar onde até hoje não há televisão, rádio, jornais, nem internet, nem sinal de telefone, nem transporte de longa distância. As novidades do mundo não chegam neste ponto da Bolívia. Com isso, podemos imaginar como eram as notícias há meio século. “Se eu tivera sabido quem ele era, eu o tivesse ajudado a fugir” disse o senhor Florencio frente a minhas perguntas, enquanto descemos até a Quebrada del Churo, onde Guevara foi capturado e hoje têm uma pedra com uma estrela vermelha. Uma das duas estradas que descem para aquele lugar atravessam a fazenda do avô que, junto com seu filho Santos, cobram 10 pesos bolivianos, cerca de um dólar e meio, para quem quer andar uns 40 minutos de descida até o rio. Dom Florencio tinha 27 anos naquela tarde do domingo 8 de outubro, quando o combate terminou com o Che preso e começou a caravana para o povoado passando por sua fazenda. “Ele parecia um indigente, barbudo, sujo, magro, com roupas rasgadas e sapatos improvisados feitos com um pano”. Che tinha escrito no dia 10 de setembro em seu diário: “Atravessei o rio nadando com a mula, mas perdi meus sapatos enquanto o cruzava e agora estou com uns panos, coisa que não é nada engraçada.”
A caravana de soldados, reféns e mortos em combate levou cerca de duas horas andando desde a Quebrada del Churo até La Higuera. À vista dos povoadores daquele tempo. Dona Hirma tinha 20 anos quando a caravana passou pela porta de sua casa, ela trabalhava como assistente de tipógrafa quando o mundo colocou seus olhos sobre seu povoado. “Começa um novo Vietnã?”, se perguntava Che em seu diário quando confirmava a intervenção dos EUA no combate. “O povo de La Higuera estava com medo, dificilmente se encorajava a espiar detrás da porta da sua casa aos estrangeiros com barba. Porque os militares pegavam e levavam preso a Valle Grande aos camponeses que ajudavam a guerrilha com comida ou recursos”, diz a senhora dona da loja “La Estrella” que fica em frente a praça. Sua loja oferece pão caseiro cozidos no forno de barro, queijos feitos com leite ordenhada todas as manhãs pela própria senhora de 70 anos. Depois de atirar nele, os militares expuseram o corpo do guerrilheiro cubano-argentino fora da escola, momento em que o povo conheceu pela primeira vez a imagem do perigoso revolucionário de quem tanto lhe falaram. Dona Hirma e uma amiga aproximaram-se levadas pela curiosidade para ver: “ficamos impressionadas com o olhar dele, ele tinha os olhos abertos”, lembra.
“Se alguma coisa fez bem o exército, foi introduzir a cultura do medo na região”, diz Leo, chefe do escritório de turismo de Valle Grande e grande conhecedor da história, enquanto vai de uma reunião para outra em plena organização dos eventos que serão realizados em outubro, nos quais se esperam atrair milhares de pessoas. “As pessoas da aldeia ficaram assustadas com a psicose criada pelo exército e os permanentes estados de cerco em que viviam”, acrescenta Leo. Estratégia que continua inclusive depois de que o líder guerrilheiro morreu: “vocês serão bombardeados por aviões soviéticos e cubanos por o terem matado”, lembra Dona Hirma que os militares tinham-lhe dito.
São 6 horas da tarde, a noite vem chegando depois de um pôr-do-sol entre as montanhas que tinge com tons violetas, celestiais e laranjas no horizonte além do Rio Grande. O céu é uma brilhantina por causa da ausência de energia elétrica, todas as estrelas servem de fundo da estátua do Che. Me encontro com Casiano, um menino curioso de 12 anos que consegue moedas para doces e refrigerastes guiando os turistas até a Quebrada del Churo. Quando lhe pergunto o que ele sabe sobre o Che, ele me conta uma história que o avô lhe disse: “quando a caravana de soldados e reféns atravessou a cidade, Che tinha um relógio no pulso e o quis dar de presente para um camponês que estava assistindo o espetáculo, mas os soldado não deixaram, embora Che insistiu que queria o dar para o trabalhador”. Quando o menino viu minha câmera, pediu-me para tirar uma foto dele e depois ele tirar uma de mim. É a sua primeira foto com uma câmera sem ser a do seu telefone. No dia seguinte, ele me convidou para jogar futebol no pátio da escola, sob a luz da lua cheia. Eu já virei seu amigo e ele será o único na aldeia em aprender a me chamar pelo meu nome e não de “Don” ou “gringo”. Ele é o menino rebelde do povoado.
Apesar da presença de tudo relacionado a morte do Che, La Higuera não vive do turismo, a maioria dos visitantes vem por umas horas tiram algumas fotos e vão embora. Plantações de milho, vacas leiteiras, batatas entre outros poucos cultivos garantem a dieta dos habitantes locais. Existe apenas uma escola primária, de modo que os adolescentes vão para Valle Grande ou Santa Cruz para estudar e não retornam. “Não há pessoas para trabalhar a terra, aquela que nos dá comida todos os dias”, lamenta Dona Hirma. É que hoje moram cerca de 50 pessoas, antes moravam 70. Seus dois filhos que ainda vivem na aldeia ganham a vida oferecendo transporte de La Higuera para Valle Grande em seus táxis. Consciente do jeito em que o turismo altera a identidade dos lugares, a senhora e a maioria dos vizinhos são a favor de uma maior exploração do turismo. O que geraria mais clientes apara sua loja e mais comensais para seus almoços e jantares caseiros. Ela sabe que se a estrada estiver pavimentada e a luz elétrica for colocada, um número maior de turistas serão encorajados a ir para tirar fotos com a estátua do Che que está em frente a sua casa.
Em frente a praça, funciona a escola primária. Na parte detrás tem um espaço – um campo de futebol – que faz as vezes de habitação comunitária para aqueles que querem ir para o povoado e não tem dinheiro para acomodação. Na porta vem até meu encontro Brian, um menino de 6 anos que sempre está sorrindo, ele me diz que não gosta de ir a escola, mas escuta-se os gritos de sua mãe desde a porta de sua casa e ele não tem escolha. “Você sabe quem é o homem na estátua?” lhe pergunto. “Sim, ele é um guerrilheiro que foi morto pela polícia”, ele responde antes de entrar na escola em que todas as paredes têm frases ou murais do Che. Ele me mostra que está carregando um ovo e uma batata para que lhe cozinhem o almoço na escola.
“Às 3 horas da tarde do dia 8 de outubro acaba o Combate del Churo, e o Che é capturado, às 7 chegam em La Higuera. O dia 9 de outubro ao meio-dia é atirado. Depois é levado de helicóptero para Valle Grande, onde o expõem em “La Lavanderia” do hospital da cidade e onde o fotógrafo francês Marc Hutten tira as famosas fotografias do Che morto com os olhos abertos. Lá foi onde o médico Ustary Arze toca o corpo do guerrilheiro e observa que ainda é quente e que não tem a rigidez de uma pessoa morta de mais de um dia. Assim, torna-se na primeira pessoa a relatar que Che havia morto naquele mesmo dia e não em 8 de outubro em combate, como tinha reivindicado pelo exército: o Che foi assassinado” conclui Christian, um historiador francês fanático do Che que vive há anos em La Higuera e que, juntamente com a sua parceira, são os donos da hospedagem “Los Amigos”, a acomodação mais confortável da cidade. Christian vai para sua giblioteca e prande bega dois livros e os dá para mim. São “El combate del Churo y el asesinato del Che”, de Reginaldo Ustariz Arze e “El asesinato del Che em Bolivia: Revelaciones”, de Adys Cupull e Froilan González. Nesses livros, é denunciado que a ditadura do General Barrientos escondeu e silenciou muitas vozes e testemunhas para instalar a ideia de que Che morreu em combate no dia 8 de outubro, por isso é que por tanto tempo lembrou-se dessa data e não 9 outubro como a data em que Guevara havia morto.
Depois dessa foto famosa em “La Lavanderia”, o Che é levado ao necrotério e suas mãos são cortadas antes de ser enterrado em um túmulo comum localizado nas proximidades do cemitério de Valle Grande junto com outros 6 guerrilheiros, permanecendo lá em segredo por 30 anos. Até que em 1997 um dos militares negou a versão, até aquele momento mantida pelo exército boliviano, de que o Che tinha sido morto em combate e seu corpo queimado e as cinzas ortigadas pelo Rio Grande. Na atualidade, onde essa fossa estava, tem o “Mausoleo del Che” juntamente com um interessante museu com fotos, replicas do diário do Che e de sua vestimenta, bem como muitas informações históricas.
Don Ismael, tinha 6 anos quando a guerrilha esteve por aqui. Lembra-se de que os guerrilheiros passaram descendo de Abra del Picacho, uma pequena aldeia acima de La Higuera. Onde os guerrilheiros estiveram e até dançaram algumas músicas aproveitando a festa da aldeia. “Eles foram vários homens que passaram tranquilos, saudando como qualquer outro visitante. Não me lembro das armas, apenas suas grandes mochilas” ele me diz, enquanto com minha inocente ajuda ele mata um porco, trabalho que Dona Gregoria encomendou, que seguindo sua visão de negócios está se preparando para o próximo festival da aldeia, onde venderá chicharrón – gordura e couro de porco frito com batata e milho – e porco assado. “Você tem medo da morte?” me surpreende e acerto um “não”. “Todos nós dizemos isso, mas quando aparece, aí realmente percebemos o que sentimos diante dela”, continua. “E você gostaria de ser um soldado de Jesus?” pergunta Dom Ismael, faca na mão, raspando o couro do porco morto, é que ele é evangelista e frequenta um templo da Igreja Universal em Valle Grande. Ele compara a guerrilha com os soldados de Jesus: “como o Che, Jesus lutou contra o império, em seu caso o romano. Pregando o bem contra o mal de Satanás. Che procurava uma vida melhor para nós camponeses, mas os ricos não o deixaram” conclui, e já é hora de cortar o porco.
As pessoas do povoado começam a mexer, todos preparando algum alimento para vender. É a festa da Virgem de Guadalupe, padroeira do lugar – sim, a mesma Virgem de Guadalupe que o sacerdote Hidalgo y Costilla levantou como bandeira na luta pela independência do México. A tradição é fazer uma promessa à virgem de dançar por três dias seguidos. É por isso que, nos dias 7, 8 e 9 de setembro há uma festa em La Higuera e em todas as aldeias vizinhas. Naqueles dias, os originários de La Higuera que migraram procurando melhor sorte em outras terras, generalmente para Valle Grande, Santa Cruz ou Argentina, retornam para se reconectar com sua terra. Uma roda de chicha, bebida de milho fermentado, e sucumbé, bebida quente feita com leite ordenhada pela manha, cravo, canela e singani, passam de mão em mão sob o som de bandas que tocam música vallegrandina, uma espécie de rancheiras mexicanas, com chapéu e violão texanos ao lado do altar da Virgem, cheio de velas coloridas e flores oferecidas por seus fiéis. As pessoas dançam e depois sentam-se para experimentar carne de porco ou frango picante.
Nesta data, as noites silenciosas, escuras e tranquilas que caracterizam a cidade são alteradas pela chegada de pick-ups 4×4 polarizados, geradores elétricos, alto-falantes e até fogos de artifício. A mistura de pessoas que se encontra resulta interessante. Pode-se distinguir facilmente entre aqueles que ainda moram em La Higuera: geralmente mais retirados, tímidos, com chinelos nos pés, roupas de campo com restos de alguma carne ou trabalho com o gado; com os higuerenses que hoje vivem longe de suas terras: roupas urbanas, jeans, sapatos, tênis e cortes de cabelo que usam jogadores de futebol. Assim rapidamente pode-se diferenciar as celebridades do povoado, na que ostentam roupas europeias ou norte-americanas, com a pele e os cabelos cuidados, maquiagem, sapatos de couro finos e uma presença que tem um ar de superioridade.
Tudo isso a unos 200 metros da escola, hoje museu, onde as últimas palavras do “homem mais completo do mundo”, segundo Sartre, ainda ecoam nas paredes como um eco infinito: “Fique calmo, você está por matar um homem”.
Outubro será uma festa. Faz 50 anos desde a morte do revolucionário que fez que La Higuera não fosse jamais a mesma. Espera-se que mais de dez mil pessoas cheguem ou consigam chegara esta vila de 50 almas e levem um pouquinho desta terra no coração, tal como aconteceu com quem escreve estas linhas.
Por Lautaro Actis