Lembro de quando morava no meu barraco, no acampamento Mario Lago, em Irati (PR), durante a graduação. Amava a calma e o silêncio que tomavam o espaço, ao fundo só se ouvia a galinha cacarejar depois de pôr um ovo.
Ainda que parecido, era diferente de quando morava com o pai e a mãe, na lavoura, plantando fumo desde novinha. Confesso que, na época, achava divertido trabalhar com meus pais e não ficar só olhando. Aprendi a classificar as folhas de fumo cedo e achava tecnológico o processo de prensa das manilhas. Os anos passaram e o lugar do fumo foi tomado pela soja, ali por 2002. Fui me afastando da lavoura, já que meu pai voltava pra casa tarde da noite, todo paramentado e – quase sempre – com enxaqueca. Anos mais tarde, meu pai passou a ter enxaqueca todos os dias, e eu com uma certa frequência também.
No acampamento, assim como lá em casa, as coisas mudaram também, e o plantio de pimenta se transformou em plantio de soja. Havia épocas que eu nem conseguia deixar a casa aberta porque o vizinho do acampamento passava fertilizantes e pesticidas até na porta de casa. E as enxaquecas que tinham passado há uns poucos anos, haviam voltado.
O cacarejo das galinhas era abafado pelo barulho da lata das grandes asas do pulverizador do trator.
No último ano da universidade, era por volta das 3h da manhã, ouvia o uivado do vento passando em volta do meu barraco. Sentei assustada na beirada da minha cama e em poucos segundos aquele tornado que rondava minha casa arrancou e levou tudo. Fiquei com as paredes do barraco e um pedaço do telhado na sala.
Lá não pegava sinal de internet, só wi-fi, e naquela altura já não existia mais luz, e claro, nem wi-fi. Esperei amanhecer, enchi meu carro com as coisas mais importantes e saí de casa. Não voltei mais lá pelo medo de ter que lidar com o medo da morte que senti naquela madrugada.
Até hoje, se chove, sinto medo.
Olhando os vídeos da situação do Rio Grande do Sul me compadeço o e quase impreterivelmente, choro. Um choro que eu sei bem de onde vem, assim como hoje sei de onde vem àquela enxaqueca.
Como trabalhadora da saúde, não consigo não pensar em como isso tem relação direta com a dimensão ampliada de saúde e suas determinações sociais enquanto um dos cernes da problemática socioambiental.
Não só por uma questão de saúde mental, mas também por reconhecer como o desenvolvimento do capitalismo explora de forma desenfreada tanto nossa força de trabalho, quanto os bens da natureza. Há centenas de pesquisas que identificam a relação entre os agroquímicos (fertilizantes e agrotóxicos) com doenças, como câncer, depressão, outras neuro divergências, problemas de pele, alergias, etc. E pasmem, desde 2008, o Brasil se tornou o maior consumidor mundial de agrotóxicos.
Se temos falado de mudanças climáticas extremas, é importante que as organizações e movimentos sociais tenham a capacidade de anunciar saídas, de modo que não caiamos no imobilismo.
O Levante Popular da Juventude, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o Movimento de Trabalhadores Sem Teto têm mostrado saídas concretas no Rio Grande do Sul, por meio das cozinhas populares, distribuindo milhares de marmitas por dia. Tem sido resgatado um valor ancestral do povo brasileiro que é a solidariedade, e olhando daqui do Paraná, é difícil não se emocionar com a resiliência daqueles que lutam diante de um cenário de guerra. No entanto, essa solidariedade precisa necessariamente vir combinada ao debate e luta por justiça climática.
Esse termo traz luz em dois aspectos fundamentais quando se fala de mudanças climáticas extremas:
1. A ideia de que as consequências das alterações climáticas são e serão desiguais, pois afetam mais as populações e territórios mais vulneráveis, pobres, econômica, racial e etnicamente discriminados.
2. Os países ditos mais industrializados e desenvolvidos foram e são aqueles que mais contribuíram para o efeito estufa. Portanto, devem ser mais responsáveis por financiar tanto as medidas mitigadoras, como os processos de transição para sociedades mais sustentáveis.
No mais, sigamos firmes, apoiando as cozinhas dos movimentos sociais no Rio Grande do Sul, e se você está fora do estado, organize, assim como o Levante Popular da Juventude, os Comitês de Solidariedade ao RS, coletando água, insumos, roupas e materiais de higiene pessoal para doar.
Que a solidariedade e a luta popular seja o caminho da esperança para aqueles e aquelas que não veem saídas diante de suas perdas materiais e imateriais, ao verem suas casas sendo levadas pela água
Via: Brasil de Fato Paraná