Este cenário é resultado de uma década de erosão democrática. Mas com raízes em uma transição democrática inacabada
O Brasil atravessa uma crise institucional que perfaz séculos de autoritarismo, violência e abuso do poder; hoje na forma do uso estratégico do direito como ferramenta de repressão política, mais contemporaneamente expressa sob o manto do abuso judicial e da militarização da política. Ou a infiltração do próprio crime organizado dentro no Estado. Este cenário é resultado de uma década de erosão democrática, no curto prazo. Mas com raízes em uma transição democrática inacabada, de uma ditadura militar cujo golpe desferido completou 60 anos. Por não romper com legados autoritários, estes acumulam-se, a produzir novas injustiças, que se multiplicam e se sobrepõem.
Desde a escravidão, passando pelo Estado Novo, a ditadura militar, o impeachment de Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade, ou a prisão de Lula e tantas outras figuras políticas, perseguidas durante a Operação Lava Jato, fenômeno que levou a criminalização da política, concedendo o caldo cultural para o bolsonarismo, até a confluência da recente tentativa de golpe de Estado, culminada no 8 de janeiro. Demonstram uma falha estrutural em consolidar a democracia, caracterizada pelo não enfrentamento das graves violações de direitos humanos praticadas no Brasil.
No período escravocrata, o direito legitimava a violência estatal, distinguindo as punições aplicáveis aos “homens de bem” e aos “indesejáveis”, pela sua cor.[1] Esse padrão autoritário e violento persistiu no Estado Novo, com a criação de tribunais de exceção e o uso político do encarceramento[2]. Na ditadura militar, tais práticas atingiram seu auge, com torturas, prisões arbitrárias e manipulação do aparato legal para silenciar opositores políticos, em nome do combate ao comunismo.[3]
A “transição”(sic) para a democracia manteve pilares autoritários intactos, com a Lei da Anistia de 1979, que deixou impunes crimes contra a humanidade perpetrados pela ditadura. Colocando o Brasil em posição de exceção na América Latina, ao não implementar uma justiça de transição integral. Pairando até hoje a discussão sobre a verdade histórica do período, com a existência de narrativas nostálgicas ou que relativizam os abusos cometidos.
Em tempos recentes, a Operação Lava Jato emergiu como um marco de retrocesso institucional, originado no Judiciário[4]. Sob o pretexto de combater a corrupção, instaurou-se um regime de exceção com prisões preventivas arbitrárias[5], delações premiadas e seletivas, obtidas sob coação análoga à tortura[6] e ampla manipulação da opinião pública. As revelações da “Vaza Jato” desnudaram colaborações impróprias entre juízes e promotores, desrespeitando garantias fundamentais. Tornou-se símbolo de um sistema de justiça instrumentalizado para fins políticos, que interferiu diretamente na dinâmica democrática e nas eleições de 2018. Favorecendo o ascenso do neofascismo.
O impeachment de Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 representaram um empuxo de forças autoritárias no país. Durante o governo Bolsonaro, ataques sistemáticos às instituições democráticas, desinformação e militarização do poder foram observados internacionalmente, processo que culminou na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, articulada por uma organização criminosa envolvendo setores estratégicos do Estado.
O relatório do inquérito da Polícia Federal, recentemente publicado, revela a existência de uma organização criminosa que articulou um golpe de Estado para subverter a democracia brasileira, envolvendo membros do alto escalão do governo, militares e agentes de desinformação. As evidências apontam para uma estratégia coordenada de descredibilização do sistema eleitoral, planejamento de assassinatos de ministro do STF, além do presidente e vice eleitos, e utilização de estruturas estatais para viabilizar o plano golpista.
Essa conjuntura destaca a necessidade urgente de uma justiça de transição no Brasil, não apenas para responsabilizar os envolvidos nos atos golpistas, mas revisar o passado autoritário, para fortalecer as nossas instituições democráticas. A responsabilização judicial deve ser acompanhada de uma educação jurídica que forme operadores do direito comprometidos com a democracia e capazes de promover uma leitura crítica da história do país, além de promovermos reparação às vítimas e à sociedade. E reformas institucionais para impedir que o sistema de justiça volte a ser instrumentalizado de maneira autoritária, com maior accountability e prevalência de garantias fundamentais para todos.
É de suma importância que a responsabilização de Jair Bolsonaro e dos outros golpistas envolvidos na tentativa de golpe de Estado seja feita de forma exemplar, seguindo o devido processo legal, respeitando o contraditório e a ampla defesa, por um juiz imparcial, sem a midiatização do processo. Evitando nulidades processuais que induzam a impunidade[7]. A busca por justiça não pode transformar-se em perseguição política, tampouco em expedientes que remetem aos vícios e excessos do passado, como os da Lava Jato ou da ditadura que se pretendia resgatar dos porões.
A reparação das vítimas de abusos estatais, como os da Lava Jato e da ditadura militar, é outro passo essencial. O reconhecimento da responsabilidade do Estado por danos causados por agentes públicos deve ser entendido como parte de um processo mais amplo de fortalecimento da democracia e de justiça de transição. Países como Argentina e Chile oferecem exemplos de enfrentamento corajoso de legados autoritários, que contribuíram para a reconstrução democrática. E que devem nos guiar agora, em nossa empreitada.
Ditadura nunca mais. Memória, verdade e justiça. Sem anistia.
Rafael Vidal – Graduando em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Diretor de Relações Institucionais da Federação Nacional de Estudantes de Direito (FENED), Membro do Colegiado Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Membro do Grupo de Estudos sobre Instituições, Política e Sociedade (GEIPS) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Militante do Levante Popular da Juventude.
Rodrigo Siqueira Jr. – Graduando em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Ex-Presidente da Federação Nacional dos Estudantes de Direito (FENED), Diretor do Observatório da Lava Jato, Diretor do Instituto de Defesa da Democracia (IDD8), Felipe Santa Cruz Advogados, Membro do Grupo de Pesquisa Brasil-China da Universidade Federal Fluminense (UFF), Representante da Comissão de Obrigações Internacionais/CNDH e Militante do Levante Popular da Juventude.
[1] AGUIRRE, Carlos. Cárcere e Sociedade na América Latina, 1800-1940. In: MAIA et al. História das Prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. v. 1.
[2] SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 375.
[3] ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: Nunca Mais – Um Relato para a História. 28. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1996.
[4] FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Poder e Corrupção no Capitalismo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015. p. 133.
[5] STRECK, Lênio; TRINDADE, André. “O passarinho pra cantar precisa estar preso”. Viva a inquisição! Conjur, 29 nov. 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-nov-29/diario-classe-passarinho-pra-cantar-estar-preso-viva-inquisicao/ . Acesso em: 1 dez. 2024.
[6] SANTA CRUZ, Felipe; FERNANDES, Fernando. 60 anos do golpe, 10 anos da Lava Jato: Nunca Mais!. Conjur, 31 mar. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-31/60-anos-do-golpe-10-anos-da-lava-jato-nunca-mais/ . Acesso em: 1 dez. 2024
[7] DAMOUS, Wadih. Gonet está enrolando? Wadih Damous explica processo que pode levar Bolsonaro à prisão. Disponível em: https://youtu.be/i4PkPXGHgRc?si=TwZPn3VDwzZI_tq4 . Acesso em: 1 dez. 2024.