“É som de preto, de favelado
Mas quando toca ninguém fica parado.”
É som de preto, de favelado
Mas quando toca, eles se tocam,
E nós é que somos criminalizados.
A música de favelado incomoda, e essa é uma afirmação. Desde seu surgimento no Brasil, o funk (década de 70) e o rap (década de 90) são perseguidos politicamente e alvos de censura. Há um esforço das elites brasileiras, representadas na institucionalidade, para perseguir e criminalizar movimentos que denunciam de forma escancarada as violências e as realidades duras de quem mora nas favelas.
É curioso como o Estado brasileiro tende a perseguir e criminalizar ritmos que são produzidos e consumidos majoritariamente pela juventude preta e pobre — sujeitos esses que a elite branca, herdeira direta de escravocratas e racista por natureza, parece não apenas repudiar a existência, mas também se apropriar e tomar para si, como forma de embranquecimento cultural e benefício próprio. O sertanejo, por exemplo, é um gênero musical que, com sua modernização e “nacionalização”, apagou suas raízes negras e caipiras. Hoje, a proporção de cantores brancos para cantores negros no sertanejo é infinitamente maior; a vida retratada na maior parte das músicas não mais exalta o sertão ou o campo. Muito pelo contrário, promove e exalta um estilo de vida de fazendeiro, o “lifestyle” moderno do agronegócio, uma realidade inatingível para a maior parte da população brasileira. Além disso, os artistas mais bem pagos com dinheiro público já foram indiciados, inclusive, por violências contra a mulher, crimes sexuais e até casos de corrupção.
Podemos afirmar que, hoje, não há uma apropriação direta da burguesia no funk, embora existam tentativas. Ainda é música de preto e favelado. E, por isso, há, sim, uma perseguição fundamentalmente racista e de caráter antipovo contra esses gêneros. Quando um artista que produz determinado gênero musical é branco e apoiado por uma minoria endinheirada, parece haver muito espaço e dinheiro para ele. Muitos desses artistas são financiados pelo agronegócio e, mesmo com todas as suas controvérsias — casos de lavagem de dinheiro, organização criminosa ligada a jogos de apostas ilegais e até envolvimento com trabalho escravo —, ainda assim, nenhum deles é perseguido ou criminalizado.
O projeto de lei denominado “Lei Anti-Oruam” — pejorativamente nomeado em referência ao rapper Oruam — foi apresentado pela primeira vez na Câmara Municipal de São Paulo pela vereadora Amanda Vettorazzo (União Brasil), onde se afirma: “Não pode o poder público institucionalizar expressões de apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas por meio de contratações artísticas em eventos com acesso ao público infantojuvenil.”
Acreditar que um artista, em algum momento, fará apologia ao crime e ao uso de drogas só porque expressa livremente o que viveu e viu cotidianamente na periferia não é apenas uma forma moderna de censura; é a manutenção de uma ideologia hegemônica das elites, expressa na institucionalidade. Reafirma-se, assim, que não há lugar — principalmente no orçamento público — para sujeitos periféricos nos espaços culturais.
Só no ano de 2023, o Brasil registrou 6.396 mortes por intervenção de agentes de segurança, sendo que 82,7% são pessoas negras e 71,7% são pessoas jovens de 12 a 29 anos. Não podemos nos esquecer e nos calar jamais sobre o genocídio que é feito pela polícia militar e civil dentro das nossas quebradas. Não podemos nos esquecer jamais de Marcus Vinicius, Ágatha Félix, dos nove que foram vítimas do Massacre de Paraisópolis (2019). A força policial tem um alvo e uma cor muito bem definidos e aparentemente não interessa à direita e seus parlamentares lidarem com a questão da segurança pública de modo coeso sem passar pela ideia do extermínio, do aniquilamento, do massacre, e do encarceramento em massa.
É, no mínimo, um escárnio afirmar que um projeto de lei com o caráter da “Anti-Oruam” tem o intuito de garantir os direitos e a integridade do público infantojuvenil. É papel da juventude de cada canto do Brasil indignar-se e denunciar esse tipo de ação vinda daqueles que só querem nos ver presos ou mortos. Essa lei não é só sobre o Oruam, mas sobre uma geração de artistas de quebrada que, normalmente, já não tem muitas escolhas na vida e que, mais uma vez, precisa lutar para garantir o direito de produzir arte e música. Sim, nós também queremos estar nos orçamentos públicos, queremos que nossas expressões sejam respeitadas e reconhecidas.
Infelizmente, o projeto de lei foi replicado e apresentado em mais onze capitais brasileiras, além de São Paulo, sendo elas: Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Campo Grande, Fortaleza, Curitiba, Vitória, João Pessoa, Porto Alegre, Cuiabá, Porto Velho e Natal. E, nesse sentido, na Assembleia Legislativa de Pernambuco, foi apresentado um projeto de lei (PL 2492/2025) que busca proibir o brega-funk, os “passinhos” e outras danças regionais nas escolas do estado, também em perseguição a um movimento cultural periférico de resistência do povo pernambucano.
Precisamos reivindicar nosso direito de produzir arte marginal não apenas porque afirmamos que a cultura periférica não é sinônimo de apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas ilícitas, mas também porque o funk e o rap são produtos de uma história de opressão e violência que o povo pobre e preto sempre viveu, e é também uma escola que salva vidas. Embora não tenham raízes puramente brasileiras, hoje esses ritmos representam a narrativa de vida de quem é genuinamente favelado.
A arte é um grito de resistência e uma possível saída para vários jovens que se encontram em um contexto de extrema violência e desesperança, pessoas que são vítimas de uma política de Estado que as negligência e as mata. Às vezes, a arte é a única porta de escape do mundo do crime.
As políticas de incentivo cultural das prefeituras e dos estados precisam assumir a responsabilidade de incluir e valorizar as formas de expressão periféricas e marginais. O orçamento público e os espaços de fomento devem contemplar não apenas os artistas que se apresentam, mas também um público historicamente rejeitado, que tem, constitucionalmente, o direito de acessar sua cultura e usufruir dos espaços de lazer nas cidades onde residem.
E, claro, esperamos que parem de nos matar.
A favela quer mais cultura e mais informação
Hariel MC, Falando com as Favelas.
Não queremos só festa
Por todo o mundo eu tenho alguns irmão
Todos com fome por dias melhores
Rezando e pedindo pro Céu proteção
Na chuva de bomba que todo dia explode
* Lívia Maria Ventura da Costa, militante do Levante Popular da Juventude
Disponível em Brasil de Fato