“O Estado é laico
Não pode ser machista
O corpo é nosso, não bancada moralista
As mulheres tão na rua por libertação(…)”
Das faces mais perversas do patriarcado e do capitalismo: a criminalização do aborto.
Pois bem, escrever sobre o aborto é tarefa árdua, tanto que a gente hesita em fazê-lo o dia todo. Olha a hora, atende o telefonema, cumpre tarefa e vai deixando de lado… de lado, até o momento em que não se pode mais escapar. E também não se pretende. Afinal, se sabemos sobre a dificuldade de dizer e o quanto milhares de mulheres são silenciadas por anos é que não devemos nos calar, mas sim, possibilitar a construção de espaços auto-organizados para que outras e mais mulheres falem, relatem seus casos, e possam, aos poucos, com a ajuda das companheiras, estudo e formação, irem se libertando do que nos oprime.
É por saberem que o aborto é crime (exceto em casos de estupro, risco de vida à mãe e a fetos anencéfalos) e, portanto, considerado conduta não aceitável socialmente e juridicamente que insistem em manter dados tão alarmantes invisíveis. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o número de mulheres no Brasil que fazem aborto passa de um milhão por ano. Obrigam-nos a fingir que esquecemos todo o ocorrido, o que, concretamente, se torna quase impossível para nós, afinal, são diversos dias tendo pesadelos, pensando sobre, sentindo culpa, e nos lembrando do acontecido. Do sangue escorrendo de nossas vaginas por meses, do chá que tinha que tomar escondido para não correr o risco de precisar fazer curetagem, do medo de não se saber viva no dia seguinte e com todas as partes do corpo inteiras, de ser presa, de continuar podendo ou não ter filhos, da dor, do cansaço, da adrenalina por tudo ter que ser absolutamente sigiloso e mal poder ser dito até mesmo entre nós. Da insegurança sobre a procedência do ato. Da dor, medo, culpa, do cansaço.
Não tinha trabalho, tampouco dinheiro. Nem eu, nem ele. Pegamos dinheiro emprestado com os amigos para encomendar o remédio ao traficante do bairro de uma conhecida. Será que ela falaria algo? E o remédio será que daria certo? Seria falso? Saberia a gente realizar o procedimento da forma correta? Não havia médico ou qualquer profissional da saúde para orientar, somente os diversos textos e sites na internet, cada qual com uma mensagem diferente. E essa conhecida, que embora tenha sido fundamental para que pudesse acessar o remédio, mais me colocava insegurança do que qualquer outra coisa. Relatava diversos casos de mulheres que abortaram, cada qual com uma história diferente e mais cabulosa. Falava para nos amedrontar? Desistir? Ou ter certeza do que queria? Nunca soube, mas sabia também que nas condições as quais me encontrava não havia outra escolha.
Anos após o ocorrido, conheci o movimento feminista e auto organização das mulheres, só ai fui me deparar com o debate sobre o tema do aborto, tratado, até então, de forma moralista ou como tabu.
Hoje, consciente de que a luta pela legalização do aborto é principalmente a luta pela saúde da mulher, entendo a profundidade e necessidade dessa discussão. De acordo com um estudo realizado no ano de 2012 em mais de 26 países em desenvolvimento, dentre eles o Brasil, e publicado em agosto de 2015 no Journal of Obstetrics & Gynaecology (BJOG), Sete milhões de mulheres são internadas por ano por complicações de saúde provocadas por abortos clandestinos e 22 mil morrem todos os anos.
A cada dia, cerca de 800 mulheres morrem por causas relacionadas à gravidez e ao nascimento que poderiam ter sido prevenidas. Desse número, o aborto clandestino responde por cerca de 8 a 15% das mortes e figura dentre as principais causas de morte materna no mundo. Segundo a mesma pesquisa, outras várias mulheres sobrevivem, mas não obtêm apoio e tratamento adequado após o aborto.
Dentre os países estudados, o Brasil foi o que menos tratou/realizou o acompanhamento das mulheres após procedimentos clandestinos. A taxa é de 2.4 para cada 1.000 mulheres. Além disso, os tratamentos que se seguem a complicações do aborto clandestino também custam aos sistemas de saúde desses países cerca de US$ 232 milhões ao ano.
No Brasil, as mortes por aborto clandestino possuem casos que, de vez em quando, chegam à mídia. Um deles foi o da auxiliar administrativa Jandira Magdalena, 27, que morreu em agosto de 2014 após procurar uma clínica clandestina no Rio de Janeiro. Ela deixou duas filhas. O corpo de Jandira foi encontrado carbonizado, sem os dentes e sem impressões digitais. Após o caso, o Estado do Rio de Janeiro deflagrou uma operação na tentativa de desbaratar clínicas clandestinas. Neste caso em questão, dez pessoas foram presas.
Pois bem, Impossível, portanto, não pensar nas milhares de mulheres que abortam todos os dias, naquelas que procuram clínicas clandestinas e se submetem a procedimentos altamente deseumanizados, correndo risco de vida. Naquelas que deveriam ser atendidas pelos serviços de saúde do nosso país e são levadas até a polícia sendo massacradas pela criminalização, por maus tratos e pelo conservadorismo. Penso nas mulheres que assim como eu e você querem ser livres junto com suas companheiras, podendo decidir sobre seus corpos e suas vidas, sobre serem mães ou não, e quando isso irá acontecer. Decidir fazer um aborto, não é decisão fácil ou simples, mas ainda assim buscamos autonomia e queremos nós poder escolher. Queremos o aborto legalizado e seguro no Brasil para que as mulheres sejam agentes da sua própria história. Exigimos o fim dos maus tratos e da criminalização! Queremos respeito, equipes capacitadas para realização de atendimento humanizado nos hospitais da rede de saúde!
Vivemos hoje uma grande ofensiva conservadora e de forças reacionárias em nosso país, que aliadas ao fundamentalismo religioso, se nutrem do patriarcado para atacar ainda mais severamente a vida das mulheres, principalmente a das mulheres negras, pobres e trabalhadoras, que mais sofrem com as duras e perversas contradições do capitalismo-patriarcado-racismo. Fato esse que se expressa nas altas taxas de violência às mulheres, no discurso de ódio destilado nas ruas e no (falido) sistema político brasileiro, que não bastasse suas instancias serem compostas majoritariamente por homens brancos, de meia idade, heterossexuais e representantes do grande empresariado e do agronegócio, estão também usurpando o direito legítimo da ex-presidenta Dilma, eleita democraticamente por mais de 54 milhões de votos populares, de dar continuidade ao seu mandato. Sabemos do caráter patriarcal e machista deste golpe e dos que o defendem, já que ao rasgarem a Constituição Brasileira e o Estado democrático de direito, negaram o bom debate político e apelaram para xingamentos e insultos misóginos. Repudiamos este governo golpista, a falta de mulheres, negros e negras e lgbts em seu ministério, e por isso, gritamos junto e bem alto: FORA, TEMER! Por nenhum direito a menos para as mulheres! Não deixaremos que continue colocando em risco a vida e os direitos da juventude, das mulheres e de todo povo trabalhador.
Mais um dia 28 de setembro se aproxima, dia de erguer os punhos e a bandeira feminista para reafirmar a luta pela saúde e pela vida das mulheres a favor da descriminalização do aborto, afinal, queremos nossas mulheres vivas e sabemos que ainda que “eu aborte, tu abortas, e sejamos todas clandestinas” muitas de nós ainda somos massacradas e assassinadas pela omissão e criminalização do Estado neste trajeto. Portanto, neste dia e em todos os outros dias do ano continuamos a exigir do Estado educação sexual para prevenir, contraceptivos para não engravidar e aborto legal e seguro para não morrer. E que fique bem avisado: não dialogamos ou depositamos qualquer esperança/confiança nesse governo golpista. Sabemos que nossas vitórias virão das ruas e das lutas! Lutamos por Diretas Já e por uma Constituinte do Sistema político que transforme radicalmente o modo de fazer política em nosso país, garantindo representação e participação de fato às mulheres para que suas demandas de vida sejam pautadas e colocadas como prioridade. Queremos as mulheres no poder, fazendo política, debatendo sobre suas vidas e sobre os rumos do país.
Ano passado, nós, mulheres de todo Brasil, demos uma aula de política nas ruas ao eclodirmos a “Primavera feminista” e realizarmos uma bonita luta contra a retirada dos direitos femininos conquistados arduamente. A principal reivindicação tratava de repudiar o projeto de lei 5069 de autoria do deputado Eduardo Cunham o qual trazia mais uma tentativa de controle sobre a função reprodutiva das mulheres. Para tanto saímos em passeata pelas diversas cidades do país escancarando a diversidade das mulheres brasileiras: jovens, adultas, filhas, mães, negras e brancas, bissexuais, travestis, transexuais e tantas outras, todas fazendo coro com o “Nem papas, nem juízes, as mulheres decidem”, FORA CUNHA! É com essa força e coragem que vamos para mais uma luta…
FORA TEMER! NENHUM DIREITO A MENOS PARA AS MULEHRES!
DIRETAS JÁ E CONSTITUINTE! MULHERES NO PODER!
ABORTO LEGAL E SEGURO! É PELA VIDA DAS MULHERES!