“Somos negras Zeferinas que com espingarda, facão e machado nunca deixamos de cerrar os punhos e enfrentar os senhores nem perdemos de vista o horizonte da tomada do poder! Viva o 25 de Julho, dia da mulher negra latino-americana e caribenha!”
Desde o Primeiro Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe em 1992, na República Dominicana, o dia 25 de julho é considerado o dia da mulher negra latino-americana e caribenha. Num momento em que diversos mecanismos são mobilizados pelas classes dominantes para transformar um debate que é coletivo em individual e mascarar a verdadeira raiz de nossos problemas faz-se cada vez mais necessário entender que somos fruto de um processo histórico, conhecer nossa história e compreender como e porquê o sistema capitalista racista e patriarcal no explora, oprime e mata.
O controle de nossas vidas, nossos corpos e de nossa sexualidade serve de instrumento de dominação desse sistema que apenas objetiva aumentar a acumulação de capital. E, dessa forma, classe, gênero e raça se entrelaçam num nó que se expressa no cotidiano de cada uma de nós. O patriarcado e o racismo têm como suas bases materiais a divisão sexual do trabalho e a divisão racial do trabalho. Por sermos mulheres, determinam que nosso espaço deve ser o privado, cumprindo as tarefas de reprodução de cuidados e de manutenção da vida. Por sermos mulheres negras determinam que, além da responsabilidade pelo cuidado em nossa casa, é nossa a tarefa de manutenção e reprodução de toda a sociedade.
O Brasil ainda não superou muito do que foi “herdado” do período escravocrata. Se nesse período os corpos de mulheres negras eram violentados pelos senhores nas senzalas, hoje esses corpos ainda são violentados por patrões e cafetões. Se nesse período muitas foram obrigadas a abandonar seus bebês para amamentar os filhos da elite branca, hoje, seus filhos são encarcerados ou assassinados ( de acordo com dados do Mapa da Violência Flacso, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil). Ainda somos nós a ocupar os mais desvalorizados postos de trabalho e a receber os menores salários.
Com a crise sanitária, devido ao novo coronavírus, e a intensificação das crises econômica, política e social no Brasil, as amarras presentes na vida das mulheres negras se tornam ainda mais evidentes e reforçam o quanto precisamos reconstruir esse país de forma igualitária. Estando historicamente submetidas a desigualdades de várias ordens, nesse momento difícil o qual estamos enfrentando, as mulheres e a população negra estão ainda mais vulneráveis. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018 afirmam que aproximadamente 70% das trabalhadoras domésticas são mulheres negras e nas periferias, as mulheres negras são as principais chefes de família. Ao assumir uma postura negacionista dos riscos da COVID-19 e não criar as condições necessárias para que o povo brasileiro realize o isolamento social, o Governo Bolsonaro se reafirma como inimigo das mulheres negras. Bolsonaro, através dessa postura, nos coloca a dura escolha entre nos expor ao contato com o vírus saindo de casa para seguir trabalhando em postos precários ou a não conseguir sustentar a família, uma vez que o governo não presta a assistência necessária. Para quem está em emprego precário ou informal realizar isolamento social se torna um desafio quase impossível diante da postura do governo.
O Sistema Único de Saúde (SUS) possui papel preponderante no enfrentamento a pandemia. No entanto, desde 2016, os governos demonstram descaso com essa importante conquista e com a vida do povo brasileiro, não investindo o suficiente na estrutura de hospitais e postos de atendimento e precarizando a educação pública de modo a dificultar a realização de pesquisas para produção de vacinas para a COVID-19. Em muitos estados a taxa de ocupação por leitos está quase em 100% e nos aproximamos de um colapso generalizado em todo SUS. Tendo que se expor ao vírus e com dificuldades de acessar o serviço de saúde pública, a população negra é a principal vítima do coronavírus. Um estudo realizado pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC Rio, com dados de 30 mil pacientes fornecidos pelo Ministério da Saúde até 18 de maio de 2020, revela que 54,78% das pessoas pretas e pardas infectadas pelo vírus vieram a óbito, enquanto entre brancos essa taxa é de 37,93. As vidas perdidas são reflexo do descaso geral por parte dos governantes. O fato da população negra ser mais afetada é mais uma evidência da política genocida adotada por Bolsonaro a partir do racismo estrutural. Por isso seguimos afirmando que VIDAS NEGRAS IMPORTAM!
Não bastasse as mortes por infecção da COVID 19, outro forte impacto na vida das mulheres negras durante a pandemia é o aumento da violência doméstica. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou que o feminicídio cresceu 22% em 12 estados brasileiros durante os meses de março e abril de 2020. Nosso cotidiano já era permeado por excessiva violência de diversas formas e níveis tornando difícil acreditar que pudesse piorar. Porém, a quantidade alarmante de mulheres mortas e agredidas dentro de casa é similar aos dados de uma pandemia. O Atlas da Violência de 2019 aponta que o feminicídio tira a vida de 13 mulheres diariamente, sendo que 66% são mulheres negras. O enfrentamento à violência contra a mulher deve ser uma prioridade, porém, desde o ano passado, cada vez menos recursos são destinados a esse fim. As medidas de enfrentamento a violência doméstica são serviços públicos essenciais e devem ser incorporadas dentro dos planos de combate à pandemia. Além de ser uma reivindicação feminista, essa é uma orientação Organização Mundial de Saúde (OMS).
Se nossa história e vida são marcadas pela violência, não se pode deixar passar que somos também marcadas pela organização popular. Dandaras, Marias Felipas, Luizas Mahins e muitas outras. Somos negras Zeferinas que com espingarda, facão e machado nunca deixamos de cerrar os punhos e enfrentar os senhores nem perdemos de vista o horizonte da tomada do poder. Somos Marielles que ousaram se levantar e contribuir para que povo consiga quebrar as amarras que nos impõem. Somos muitas que vieram antes de nós, as que aqui estão e tantas outras que ainda virão.
O povo brasileiro, com o protagonismo das mulheres negras, sempre organizou sua resistência a partir da solidariedade e neste momento não é diferente. São diversas as iniciativas para que cada família passe por esse momento da forma mais digna e para manter a nossa Periferia Viva. São distribuídas cestas básicas, kits de higiene, orientações jurídicas e de segurança. Qualificamos as ações para também contribuir no enfrentamento à violência contra a mulher. Nas redes, nas ruas e porta a porta nas periferias, com a campanha Em Casa sim, Caladas Nunca!, estamos divulgando os meios de denúncia e construindo redes de apoio para as vítimas. Convidamos mulheres e homens a se somarem pois, se eles lá não fazem nada, com muitas mãos faremos por aqui as tarefas necessárias para construir o bem viver para as mulheres negras e todo povo brasileiro.
Que 25 de julho seja dia de reafirmar que é possível tomar a história por nossas próprias mãos e mudar seu rumo. Que seja dia também de ecoar pelos quatro cantos de nosso país que construir um novo capítulo dessa história perpassa necessariamente pelo enfrentamento ao sistema capitalista racista e patriarcal e a construção de um Projeto Popular para o Brasil.
Viva o dia da mulher negra latino-americana e caribenha!
*Ana Carolina Vasconcelos é estudante de Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais, Vice Presidenta da União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais e militante do movimento social Levante Popular da Juventude.
**Paulinha Silva é estudante de Pedagogia na Universidade do Estado de Minas Gerais, Diretora de Mulheres da União Nacional dos Estudantes e militante do movimento social Levante Popular da Juventude.