Na coluna Periferia Viva desta semana vamos falar sobre a Brigada Zilda Ramos, da cozinha solidária do MST.
O capital não nos pode arrancar nem o amor, nem chama revolucionária que arde em cada coração
Desde quando os movimentos sociais saíram em defesa da vida, enfrentando o cenário de morte provocado pela covid-19 e pela política genocida do atual governo brasileiro, uma das ações do MST no estado de São Paulo foi produzir marmitas para pessoas em situação de vulnerabilidade.
Durante esse tempo, as mãos que produzem as marmitas na Brigada Zilda Ramos vieram das várias regiões onde o MST São Paulo está organizado. São militantes sem terra, que não hesitaram diante do chamado ao cuidado com o outro. Ao saírem dos seus assentamentos e acampamentos, resguardados dp vírus e deslocaram-se para o epicentro da pandemia, como era o caso de São Paulo, no começo de abril de 2020, essas e esses militantes demonstraram confiança no Movimento, uma relação que vem de longe, desde o chamado para lutar pelo direito à terra.
Quando um movimento social realiza uma ação de solidariedade, espera algo em troca? Sim, espera.
Com a solidariedade busca afugentar a fome e denunciar o projeto de poder em curso no Brasil, que atenta sobre a vida das pessoas e da natureza. Espera abrir sobre o mar da barbárie provocado pelo capital vias para a superar esta ordem nefasta.
Quer assim, pela solidariedade, instigar a classe trabalhadora a tremer de indignação contra esta ordem que legitima o ataque permanente contra a vida dos povos indígenas e quilombolas, assim como em relação aos despejos, tal qual como o recentemente ocorrido no Assentamento Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais.
A Brigada Zilda Ramos reúne práticas e valores acumulados pelo MST nos seus 36 anos.
Como por exemplo, o já conhecido valor da solidariedade de quem vive na prática o internacionalismo e possui quatro brigadas internacionais na América Latina e no continente Africano. Organizada em três fases, a Brigada contou com o envolvimento de 40 militantes: jovens, mulheres e homens que se revezaram entre os dias 22 de abril à 29 de Agosto.
As atividades realizadas são: percorrer os assentamentos da Reforma Agraria para trazer a produção para a capital, o cozimento e o preparo do alimento até a entrega nas mãos de quem necessitava. Buscar doações de roupas – que muitas vezes vão junto com as marmitas – têm feito parte do dia a dia da militância que constrói a Brigada Zilda Ramos.
O cuidado nos protocolos de saúde, que têm em vista evitar a contaminação da covid-19, é permanente e exige disciplina rigorosa.
O tema da saúde no Movimento Sem Terra vai para além do cuidado físico imediato e localizado. Por meio do Setor de Saúde aprende-se desde cedo que “saúde é luta contra tudo o que nos oprime”.
Dentro do movimento há um permanente processo de construção da cultura do cuidado, que passa pelo individual ao coletivo, do físico ao cuidado com o projeto revolucionário.
As práticas desenvolvidas semanalmente pelo Setor de Saúde junto à militância da Brigada Zilda Ramos, envolveram: ventosaterapia, acupuntura, escalda pés, massagens, dentre outras. E junto a essas práticas buscou-se desenvolver a consciência de que cada companheiro e companheira carrega consigo um jeito e de cuidar de si e de cuidar do outro.
A compreensão desta capacidade carrega em si potencialidade de romper com as correntes emaranhadas nos corpos domesticados e maltratados pelo trabalho explorado no sistema do capital.
Há tempo o MST realiza formação política contra a hierarquia de gênero e a lgbtgobia, assim como ações concretas organizadas pelas mulheres do MST.
Contudo, os desafios se apresentam permanentemente: a Brigada foi coordenada por mulheres que se depararam com o desafio de estarem diante de uma equipe formada por homens e mulheres, em um ambiente que o patriarcado escravizou as mulheres à cozinha ao mesmo tempo em que negou aos homens este espaço.
Dentre os cursos de formação voltados para a Brigada Zilda Ramos, os temas de gênero e questão racial fizeram parte do currículo. Além disso, houve o processo de alfabetização de dois membros do grupo.
Em 20 anos, o MST escolarizou 200 mil jovens Sem Terra, e construiu 40 centros de formação politica no Brasil todo. Por isso, a Brigada Zilda Ramos não poderia deixar de ser um espaço de formação e de debate. Para além disso, ao estarmos cientes da necessidade de democratizar o acesso aos instrumentos musicais a Brigada também contou com atividades formativas de percussão.
Como ensinou Eduardo Galeano, a solidariedade difere-se da caridade, porque nela está imbuída o respeito e a capacidade de aprender com o outro, Aprendizado é uma das palavras mais usadas pela militância para traduzir a experiência na Brigada Zilda Ramos: “enquanto seres humanos enquanto militantes”, relatam.
É notável ainda a criatividade mobilizada para superar tantos desafios, que não seria possível sem o processo organizativo do MST: desde a capacitação com nutricionistas, até o revezamento nas tarefas da cozinha, estas que ocorrem de formar circular.
Toda a militância que compõe a Brigada deve aprender todos os processos de preparação dos alimentos e ao experimentarem isso, fica mais fácil organizar o trabalho a partir das potencialidades de cada um. O espaço da cozinha tem seus desafios: úmido, quente e pesado.
Mas quem cozinha na Brigada Zilda Ramos motiva-se pensando em quem espera pela refeição, que em muitos casos é a única no dia. Apesar do cansaço, a militância relata um sentimento de gratidão por poder contribuir com quem precisa.
A solidariedade significa aliança entre as categorias da classe trabalhadora em luta. Neste sentido, a Brigada Zilda Ramos, pôde, por meio da doação de alimentos, aliar-se em lutas que emergiriam nos últimos meses e outras que há tempos estão em curso.
Somando-se aos Entregadores Antifascistas, ao Sindicato dos Bancários de Osasco, ao Movimento Estadual da População em Situação de Rua – Rede Rua, ao Movimento dos Sem-Teto do Centro – MSTC e à Associação dos Migrantes pela Integração Comunitária – AMIC.
Contam-nos toda a militância que compôs e construiu a Brigada Zilda Ramos que saíram transformados desta experiência grandiosa e afirmam “o capital não nos pode arrancar nem o amor, nem a chama revolucionária que arde em cada coração militante”.
Ode à primeira Brigada Zilda Ramos da Cozinha Solidária do MST
Adriana Novais – Abril de 2020
Na cozinha solidária, as máscaras eram escudos contra um inimigo invisível, mas não impediam os olhares cuidadosos que acompanhavam cada colherada de alimento que enchiam as marmitas.
O inimigo era invisível, mas de grande poder, colocou a nu a cara pútrida do capital que há tempos com pés nas ruas e ocupando os latifúndios, confrontamos.
A máscara que escondia os sorrisos, realça os olhos de Claudete, atenta para que nenhum alimento fosse desperdiçado, gesticulava pelo restaurante como uma regente checando a quantidade, o ponto de cozimento, o tipo de corte e a ordem dos alimentos.
A máscara realçava o olhar de Yasmim, acostumado atrás das lentes, estava atento às orientações.
Vitória que gosta de cantar quando cozinha, movia-se de acordo com uma música que ninguém ouvia, enquanto refogava a carne.
Fernanda e Ester convictas do poder da solidariedade dividiam o peso das panelas fumegantes.
A máscara não escondia olhar firme de Everton, olhar de quem não hesita ao chamado do cuidado com outro.
A máscara cujo uso foi orientado por Didi e Vanuza, dias antes que chegasse à cozinha, não podia esconder a felicidade de Suzana que aceitou o desafio de cozinhar para tanta gente.
Rodrigo, enquanto mexia a grande panela de arroz pensava sobre a reinvenção da luta e do diálogo entre a classe trabalhadora.
Pedro Felipe e Maria Ivone, enquanto picavam os temperos, brincavam de adivinhar de qual assentamento teria vindo cada alimento que estava na cozinha.
Chegada a hora de embalar, junto com cada marmita um pedaço de pão vindo da Escola Nacional Florestan Fernandes que nos ensina o valor da solidariedade.
Cada gesto materializado na cozinha traduzia o que cultivamos em mais de três décadas de Movimento.
Viana cuja tarefa era buscar as doações pôde ver o ânimo das companheiras e dos companheiros que traziam orgulhosos suas produções.
Valmir, conduzindo o carro carregado com as marmitas, sabia, como todos ali, da importância de alimentar quem tem fome e aprendia um novo jeito de fazer trabalho de base.
A fome das pessoas que vivem naquela ocupação, Zona Norte de São Paulo, nos lembra qual foi a matéria da acumulação primitiva do capital e da sua contínua reprodução. As marmitas, ao serem recebidas, nos lembram, que somente nós, classe trabalhadora organizada, podemos interromper este ciclo secular.
Edição: Rodrigo Durão Coelho
Via Brasil de Fato