O dia 18 de maio é marcado como dia da luta antimanicomial, o que nos convoca a um resgate das lutas históricas que construíram o sentido conceitual e político de defender uma sociedade sem manicômios. Para isso, é necessário também um resgate histórico acerca do sentido da loucura na modernidade. Historicizar esse conceito é fundamental para compreender sua profunda relação com o modo de produção capitalista e, com isso, compreender o lugar social que o hospital psiquiátrico ocupou, qual era sua função e para quais interesses ele servia.
Basta uma breve análise de dados que mostram como era a realidade das instituições psiquiátricas para saber que sua função nunca foi a de promover o cuidado em saúde mental. Afinal, o “louco” passa a se tornar um problema à medida que não é útil à acumulação capitalista e, seu isolamento, se torna uma saída do Estado para “lidar” com as contradições próprias do sistema.
Associar a loucura à periculosidade e à violência é justamente uma forma de sustentar a lógica asilar. E ela vem somar com o racismo e o patriarcado, uma vez que são majoritariamente pessoas negras e mulheres, a quem a “doença mental” era associada, associação que segue extremamente atual, ainda que com novas roupagens.
A Luta Antimanicomial é uma luta indissociável da luta anticapitalista, uma vez que é estrutural do próprio sistema a construção de instituições segregadoras, justamente porque desse modo se procura esconder os problemas gerados por um modo de produção que desumaniza e aliena.
Portanto, a luta antimanicomial não é restrita a trabalhadores e usuários dos serviços de saúde mental. Ela deve ser uma luta de todas e todos que lutam contra todas as opressões. A luta antimanicomial deve ser entendida dentro da luta de classes. Sendo assim, defender um projeto popular para as filhas e os filhos da classe trabalhadora brasileira é necessariamente defender uma sociedade sem manicômios.
No entanto, não podemos deixar de mencionar que tratar a loucura apenas como produto social também pode nos levar a seguir com a lógica positivista, como bem enfatizado por Franco Basaglia (2000, p. 98-99): “Se eu pensasse que a loucura é só um produto social, ainda estaria em uma lógica positivista. Eu acho que a loucura e todas as doenças são expressões das contradições do nosso corpo, e quando eu falo de corpo, digo corpo orgânico e social”.
Portanto, não se trata de negar o sofrimento psíquico, mas compreendê-lo a partir da totalidade, por meio de uma leitura materialista e dialética. Não à toa, foi ele (Basaglia) a grande referência da reforma psiquiátrica italiana, visto que, além de criticar as instituições manicomiais, ele supera sua lógica, propondo novos dispositivos que vão, de fato, oferecer assistência e cuidado a pessoas em sofrimento psíquico.
Luta Antimanicomial no contexto brasileiro:
Ao voltarmos nossos olhos para a realidade brasileira, é importante destacar a relação entre a reforma sanitária e a reforma psiquiátrica, ambos fruto da organização popular, com um horizonte não apenas institucional e jurídico, mas sobretudo, intrinsecamente vinculado a um projeto de sociedade que coloca no centro a classe trabalhadora.
Em 2001, foi promulgada a Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216), que redefiniu o modelo de assistência em saúde mental de pessoas em sofrimento psíquico, buscando romper com as práticas manicomiais que eram hegemônicas até os anos 80 no Brasil. Pacientes eram isolados em hospícios, sanatórios, manicômios, os ditos hospitais psiquiátricos. Eram
submetidos a tratamentos cruéis e desumanos, a medicalização excessiva, vigilância ininterrupta e práticas graves de violência, como uso de camisas de força e choques elétricos.
No entanto, esse cenário de avanço de 2001, sofreu profundas alterações no governo de Jair Bolsonaro, a partir de diversas ações que retomam a prática da institucionalização e enfraquecem o modelo ambulatorial. Em março de 2019, o Ministério da Saúde emitiu uma Nota Técnica n.° 11/19 alterando as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental e recomendando a institucionalização de pacientes, inclusive crianças e adolescentes.
Em junho do mesmo ano, Bolsonaro sancionou a lei n. 13.840/19, flexibilizando os requisitos para internação involuntária de pacientes de saúde mental. Além disso, foi aprovado o Projeto de Lei n. 37/2013, que amplia a destinação de recursos públicos às Comunidades Terapêuticas, instituições de internação que não integram a Política Nacional de Saúde Mental, mas são fruto de ações fragmentadas de suporte social e religioso. Ou seja, aqui estamos falando de uma reedição do modelo manicomial, sob a perspectiva moralizante, que vai de desencontro à ciência e às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
No governo Lula 3, em janeiro de 2023, primeiro ano de sua administração, foi criado o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas (DACT), no Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), pelo Decreto n.º
11.392. Comunidades Terapêuticas historicamente se vinculam a entidades religiosas, que as criam, organizam, mantêm e lhes dão identidade. Além disso, as Comunidades Terapêuticas seguem um modelo de “cuidado” associado à restrição da liberdade, ao isolamento em locais distantes, à lógica proibicionista e punitivista, sem levar em consideração aspectos fundamentais da saúde pública: territorialidade, autonomia, tratamento em liberdade, etc. É lamentável a postura do governo Lula com a pauta da saúde mental. Contraditoriamente, o mesmo partido de Paulo Delgado, autor da lei da reforma psiquiátrica, é o partido que hoje endossa práticas manicomiais.
Com isso, fica evidente o caráter político da luta em defesa dos direitos das pessoas em sofrimento psíquico, visto que o manicômio não é uma instituição definitivamente superada na nossa história. Seguimos constantemente sob ameaças de seu retorno, uma vez que, para além de uma instituição física, o manicômio é a sustentação de uma série de práticas que ideologicamente servem aos interesses do controle e da opressão de grupos marginalizados. Se no século passado eles eram aparentemente asquerosos, hoje eles aparecem muitas vezes bem “engomados”, de jaleco branco, em clínicas privadas, religiosas. Seguem muitas vezes legitimados pela ciência positivista, pelos manuais diagnósticos. E não por estarem mais “apresentáveis”, deixam de ser perigosos.
Para concluir, é importante afirmar que a luta antimanicomial incluiu no horizonte a superação do sistema capitalista e de imediato a defesa da rede de atenção psicossocial (RAPS), de uma saúde mental exclusivamente pública e gratuita, do fim das comunidades terapêuticas. Além disso, nunca esquecer que lutar por saúde mental é lutar por moradia, terra, renda, trabalho, lazer, cultura, em suma: por condições de vida digna.
Nenhum passo atrás, manicômio nunca mais! POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS!