Dia da Visibilidade Trans: em memória de Tibira e todas as vidas silenciadas, o momento é de elaborar e agir em prol da construção do mundo que queremos
Desde 2004 temos uma data instituída em território brasileiro para a campanha de visibilidade trans. Na prática, a institucionalização da data é uma oportunidade para:
a) aumentar a conscientização sobre os desafios enfrentados por pessoas trans e travestis;
b) combater preconceitos e estigmas que podem resultar em discriminação;
c) dar atenção às reivindicações da população travesti e trans brasileira.
A questão é que, para chegar até aqui, tivemos um caminho de luta.
Ainda no que conhecemos como período feudal, se iniciou a constituição de um conjunto de ideias que fundaram a noção de normalidade, criadas pela Igreja e pelo Estado para garantir o controle social das elites sob a plebe. Essa é a moldura do que hoje conhecemos como ocidentalismo [conjuntos de ideias e práticas que constituem o conhecimento ocidental].
Assim, a heteronormatividade é resultado de séculos de ideias e práticas que abominam qualquer forma de diversidade, seja ela sexual, racial, ou no modelo de produção da vida.
Aqui nestas terras, Guaranís, Pataxós e Marajoaras viviam culturas diversas sem serem incomodados, mas não por muito tempo. Um colonizador português, chamado Gabriel Soares de Souza (1540-1591), escreveu um Tratado Descritivo do Brasil em 1587, onde afirma, em tom de choque, que os tupinambás são “tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam.” e que “nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas.”
Em 1613, Tibira, indígena tupinambá foi executado a tiro de canhão. Ele é considerado o primeiro mártir da homofobia no Brasil. Assim se inicia o rastro de sangue, exploração e extermínio de corpos divergentes da norma colonial.
Seguimos nossa investigação prática das raízes da intolerância no Brasil. A exemplo de tantas transformistas do século XX que sofreram perseguição, como Madame Satã, inúmeras vezes preso e, ao fim da vida, internado como indigente em um hospital psiquiátrico. Vera Verão é outro exemplo de ícone da cultura brasileira. No entanto, Jorge Lafond foi barrado de entrar no palco de um programa dominical por veto de Padre Marcelo, um dos primeiros padres “pop” do Brasil. Lafond, que já vinha de um quadro físico e emocional frágil, faleceu em 2003.
Mudamos de século, mas seguimos o curso da história, amontoando nossos nomes em listas de memória:
Em 2023, o Brasil registrou 145 assassinatos de pessoas trans e travestis.
Dito isso, é muito importante que sejamos capazes de ir além do sofrimento. A travestilidade, a transexualidade e as identidades transgêneras são a expressão dessa diversidade sexual que o ser humano foi capaz de experienciar ao longo de sua existência.
Podemos defender essa tese em três exemplos notáveis:
1. Guayaki-Ache, nação indígena nômade que habita as terras do Paraguai e do Brasil ao longo do Alto Paraná e da região de Guaíra. No capítulo O Arco e o Cesto, o antropólogo Pierre Clastres analisa o comportamento de Krembégi, uma pessoa que, nascida para construir o arco – ferramenta de trabalho masculina, de caça –, constrói o cesto – ferramenta de trabalho feminina, de coleta – e, em seu contexto social, é respeitada.
Na Indonésia, os bugis são o maior grupo étnico da ilha de Sulawesi. Eles reconhecem cinco diferentes gêneros: Makkunrai, Oroané, Calalai, Calabai e Bissu, sendo os últimos reverenciados como xamãs ou médiuns.
Os Hijras, grupo formado por pessoas transgênero que há cerca de 4 mil anos existem na tradição hindu e são devotos à deusa Bahuchara Mata. Em 2014, a Suprema Corte da Índia passou a reconhecer pessoas transgênero e eunucos como um terceiro gênero.
Esses exemplos antropológicos demonstram que “anormal” é nossa estrutura social hegemonicamente ocidental e capitalista, criada nas bases ideológicas, econômicas e políticas da hierarquização para dominação.
Num cenário cinza, é preciso colorir o presente, é preciso ousar sonhar e construir nosso futuro sem armários. Por isso, é profundamente subversivo ser um corpo estranho. Não se adequar às normas sexuais, raciais ou de gênero é a negação da ordem capitalista.
Contudo, precisamos posicionar em seu devido lugar a agência individual, que possui um limite concreto, pois a ação de um indivíduo pode até transpor limites específicos de uma trajetória, mas só a luta coletiva e organizada pode transformar a estrutura social.
Precisamos partir da concepção de que a forma piramidal como se organiza a divisão internacional do trabalho mantém no topo os mesmos homens, heterossexuais e euro-estadunidenses. Ainda que tenhamos, vez ou outra, uma exceção, a regra continua valendo: se há topo, há competição e há exclusão.
Há ainda a disseminação de valores e princípios liberais que estimulam a validação do indivíduo como ápice da existência, tratando coletividades apenas como nichos de mercado. Desse modo, consolida-se um ciclo ideológico em que, individualmente, nos entendemos como parte de uma identidade coletiva por meio do consumo, sem haver necessariamente organização coletiva que nos liberte de fato.
Por isso, é necessário afirmar: não queremos apenas representatividade ou uma pessoa no topo; queremos a subversão dessa lógica de disputa e exclusão.
Para resistir, cabe a nós compreender a importância de criar e manter espaços propícios à diversidade, férteis e seguros para pessoas diversas. Onde é possível criar vínculo, afinidade, luta e resistência coletiva.
A cada ano, em cada data instituída, relembraremos de toda a gente que, por ser diferente, foi calada e discriminada. Mas seguiremos juntando gente, em torno de uma coletividade subversiva, aquela que, ao contrário de normatizar, reconhece na diversidade nossa força para trans-formar o mundo.