Do corpo à terra: Um sistema que consome tudo

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O futuro não pode continuar sendo ditado por quem transforma tudo em lucro.

Por: Ana Beatriz Duarte

Na sociedade em que vivemos, movida pelo lucro e pela produtividade excessiva, o cansaço deixou de ser exceção e virou regra. Não é o bem-estar coletivo que orienta as decisões econômicas e políticas, mas sim a acumulação de capital. Vemos essa lógica tanto na exaustão da classe trabalhadora quanto na destruição dos bens naturais. No Amapá, o Rio Araguari é marcado pelo impacto brutal de um sistema que insiste em extrair sem limites: enquanto grandes empreendimentos lucram com a exploração do rio, as populações locais sofrem com os impactos sociais, ambientais e econômicos. Enquanto vivemos uma rotina exaustiva de esforço, metas e desempenho, a natureza colapsa ao nosso lado.  

O neoliberalismo aprofunda a exploração da força de trabalho ao mesmo tempo em que intensifica o controle sobre os recursos naturais. Trabalhadoras e trabalhadores vivem sob constante pressão por produtividade, metas e competitividade. A precarização do trabalho e a sobrecarga mental não são falhas do sistema, mas condições para seu funcionamento. A saúde mental da juventude, marcada por ansiedade, cansaço extremo e sensação de inutilidade, é uma face concreta da alienação produzida por esse modelo. O chamado burnout não é uma doença individual, mas sim um sintoma coletivo da exploração generalizada.  

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han descreve em sua obra Sociedade do Cansaço que “a sociedade moderna não é mais uma sociedade disciplinar, mas uma sociedade do desempenho”. Segundo ele, vivemos uma transição: saímos de uma sociedade disciplinar marcada pela repressão externa e entramos na sociedade do desempenho, onde a exploração é interna. O sujeito contemporâneo explora a si mesmo em busca de produtividade e realização pessoal, numa lógica que mascara a dominação por meio de uma suposta liberdade. Essa ideia ajuda a compreender por que tantas pessoas adoecem sem perceber a estrutura que as empurra para isso.  

Porém, essa lógica não se limita aos corpos humanos: o mesmo mecanismo que nos adoece impõe à natureza o destino de funcionar até se esgotar. E isso é chamado de “burnout ecológico” esse esgotamento dos ecossistemas, provocado por uma lógica que exige da terra o mesmo desempenho doentio que exige do povo. O Rio Araguari é um exemplo disso. Com a instalação de três hidrelétricas, interesses econômicos ignoraram os limites ecológicos e os modos de vida tradicionais. A pororoca desapareceu, os peixes estão sumindo, e as comunidades ribeirinhas perderam parte de sua cultura e sustento, tudo em nome da geração de energia para grandes empresas. O meio ambiente, nesse processo, é tratado como mercadoria. Mesmo com três hidrelétricas em seu território, o estado do Amapá não usufrui diretamente da energia gerada. Em 2020, um apagão deixou o estado 22 dias sem fornecimento elétrico, o que prova a quem esse modelo realmente serve.  

Essa realidade não é um acidente, mas a engrenagem funcionando como planejada. Ela integra um modelo econômico que concentra riqueza, destrói comunidades e ameaça a vida do planeta. A lógica capitalista transforma tudo em mercadoria e, quando não serve mais, descarta. Romper com essa dinâmica requer organização popular e a defesa de outro projeto de sociedade. Alternativas existem: energias renováveis de baixo impacto, planejamento participativo e a desaceleração da vida. Como propõe Byung-Chul Han, desacelerar não é retroceder, é resistir.  

Cuidar dos rios, dos corpos e da vida exige confrontar o sistema que os adoece. Esse pode ser o primeiro passo para construir um futuro diferente, um futuro em que “viver bem” significa respeitar os ritmos da vida, sem comprometer seus limites. Sobretudo, o futuro não pode continuar sendo ditado por quem transforma tudo em lucro. Precisamos colocar no centro do debate os direitos coletivos, a autonomia dos povos e o compromisso com a justiça social. Pois não haverá justiça ambiental sem enfrentar as raízes econômicas da desigualdade.  

Beatriz Duarte, militante do Levante Popular da Juventude

*Este é um artigo de opinião

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