por Caio N. de Toledo*
A Universidade Estadual de Campinas está sendo, democraticamente, interpelada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Em suas “Conclusões e Recomendações”, o Relatório Final da CNV, divulgado publicamente em 10 de janeiro de 2014, propõe que sejam revogadas todas as homenagens que – durante o período da ditadura militar – contemplaram autores de “graves violações de direitos humanos”. De forma clara e objetiva, o documento sugere que as entidades públicas de todo o país deveriam “cassar as honrarias” concedidas a “agentes públicos ou particulares associados a esse quadro de graves violações” (capítulo 18, parte V).
A meu ver, duas interpelações estão sendo feitas à comunidade acadêmica da Unicamp: (a) o questionamento do título de Doutor Honoris Causa concedido ao Coronel Jarbas Passarinho e (b) o fato de um Mural – recentemente erigido no campus da Universidade – celebrar o ditador Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco.
Como amplamente informou o recente Boletim especial da Associação dos Docentes da Unicamp (Adunicamp), o Conselho Universitário da Universidade (CONSU), na sua sessão de 5 de agosto de 2014, debateu amplamente um pedido de revogação do título de Doutor Honoris Causa – concedido pelo então Conselho Diretor, em 1973 –, ao Coronel Jarbas Passarinho.
Submetida por quatro Congregações da Universidade (Faculdade de Educação, Instituto de Artes, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e Instituto de Estudos Literários), a Moção que pedia a retirada do título deixou de ser aprovada por um único voto (o quórum qualificado exigia, minimamente, que 50 votos fossem alcançados) na reunião do CONSU.
Enquanto 49 conselheiros (docentes, funcionários e estudantes) se mostraram afinados com os intensos debates que – ao longo dos últimos anos e, em particular, no cinquentenário do golpe de 1964 – têm ocorrido na sociedade brasileira, os votos de 20 docentes (10 abstenções, 10 contrários) foram responsáveis pela manutenção da homenagem concedida a um importante agente público associado, durante os 21 anos da ditadura militar, às graves violações dos direitos humanos.
Entre os argumentos em defesa da revogação, examinados na sessão do Consu, podem ser destacados: as gestões do Coronel Passarinho – como Ministro do Trabalho e Previdência Social (1967-1969) e Ministro da Educação e Cultura (1969-1974) – teriam sido perversas para a cultura, a educação e os sindicatos brasileiros.
Entre os atos, sob a inteira responsabilidade do ex-Ministro, poderiam ser citados: a aprovação do draconiano AI 5 (“o golpe dentro do golpe”) que aposentou compulsoriamente importantes pesquisadores e docentes da Universidade brasileira; o decreto 477 que puniu estudantes e funcionários; o desmantelamento do ensino público e o apoio à privatização das universidades; a punição de lideranças sindicalistas; a difusão das macarthistas Assessorias de Segurança e Investigação nas universidades de todo o país etc.
Foi também ressaltado no debate do CONSU que, até o presente momento, o ex-Ministro jamais procedeu a qualquer autocrítica sobre sua trajetória política e ideológica. Ou seja, ainda hoje, o coronel continua justificando o arbítrio e o terror de Estado representados pela ditadura militar (1964-1985). Em reiterados depoimentos, ele afirma – tal como o ex-Ministro Delfim Netto em recentes entrevistas – estar convencido da imperiosa necessidade da decretação do AI 5. Recorde-se que, ao assinar o fatídico decreto, Passarinho mandou às “favas todos os escrúpulos da consciência”.
No contexto do atual debate sobre os 50 anos do golpe de 1964, a decisão do CONSU teve uma ampla repercussão na grande imprensa e blogs de orientação democrática e crítica. Para os setores democráticos, a Unicamp não saiu bem na foto.
O blog Viomundo – que divulga regularmente informações relativas às universidades públicas paulistas –, por exemplo, não apenas destacou a notícia da não revogação como também informou um fato inédito na história da universidade brasileira.
Em matéria assinada pela jornalista Conceição Lemes, Viomundo relata que o cientista Boris Vargaftig, não desejando estar na companhia de Jarbas Passarinho – na mesma lista de premiados pela Unicamp –, abriu mão do título deDoutor Honoris Causa a ele concedido, em 1991, pela Universidade. Ironia da história: a Unicamp aceita a recusa de um título – atribuído a um renomado cientista –, mas se nega a revogar uma honraria imerecidamente concedida a quem foi um adversário jurado de cientistas e pesquisadores brasileiros.
Outra interpelação dirigida à comunidade acadêmica da Unicamp se configura pela existência de um extenso Painel – inaugurado em 2013 – localizado na Praça da Reitoria da Universidade. Sob o pretexto de rememorar o lançamento da pedra fundamental da Unicamp (1966), e, desta forma, homenagear a atuação de seu primeiro Reitor, prof. Zeferino Vaz, o Painel celebra a presença no campus do Senhor Presidente da República Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Esta celebração se evidencia no Painel por meio da reprodução de um trecho – em caracteres góticos – da Ata daquela cerimônia.
Ao escolher este específico texto, não outro que poderia servir para idêntico propósito, os criadores do Painel (artistas plásticos e as autoridades do campus) praticaram uma nítida operação ideológica. Esta intervenção consistiu no fato de se privilegiar, no quadro atual da democracia política brasileira, um texto memorialístico contaminado por um registro burocrático e servil aos “vencedores de 1964”. Enquanto livros, artigos, dissertações, teses etc., escritos por docentes e pesquisadores da Unicamp – bem como as conclusões do Relatório Final da CNV –, se referem ao Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco como o primeiro ditador do regime de 1964, os idealizadores do Painel da Reitoria resolveram celebrar a presença no campus do “Exmo. Senhor Presidente da República”.
Tendo em vista que nenhum texto é inocente e desprovido de efeitos no debate político, a escolha da Ata de 1966 não deixa de ser uma forma enviesada de homenagear um golpista que teve papel decisivo na conspiração e derrocada da democracia brasileira em 1964. É de se convir, que concebido e erigido 49 anos após os eventos de abril de 1964, o Painel nenhum compromisso tem com o pensamento crítico perseguido pelos pesquisadores e docentes da Unicamp. Caso tivessem sido consultados pelas autoridades do campus, o Painel – que busca lembrar as origens da Universidade – poderia ter outra configuração estética e histórica.
Interpelada pelas Recomendações da CNV, como se comportará a comunidade acadêmica da Unicamp em relação a estas duas homenagens?
Aceitará que o Coronel Jarbas Passarinho permaneça na lista dos agraciados com o título Doutor Honoris Causa ao lado de César Lattes, D. Paulo Evaristo Arns, Antonio Candido, Celso Furtado, Paulo Freire e outros? Ou reivindicará – provocada pelos trabalhos da CNV – uma nova reunião do CONSU a fim de debater a matéria?
Por sua vez, aceitarão os docentes, estudantes e funcionários – sem um amplo debate democrático – que a Unicamp continue, de forma solene e oficial, afirmando àqueles que se deparam com o Painel que o primeiro ditador do regime militar, na verdade, era um eminente “Senhor Presidente da República”?
Caio N. de Toledo é professor aposentado do IFCH e membro da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni” da Unicamp.
Fonte: Viomundo