O dia 10 de outubro é marcado como o Dia Nacional da Saúde Mental. Neste ano, essa data foi escolhida para simbolizar o dia de luta contra as Comunidades Terapêuticas. Movimentos sociais, trabalhadores/as, usuários/as, pesquisadores/as e militantes do campo da saúde mental, álcool e outras drogas construíram uma campanha nacional com o objetivo de denunciar as violências cometidas por essas instituições e defender o fim de toda forma de encarceramento disfarçada de cuidado, instituições que nada possuem de comunitário e tampouco de terapêutico.
As Comunidades Terapêuticas (CTs) – assim como qualquer outra nomenclatura que possa servir como camuflagem (clínica de reabilitação, centro de tratamento, etc.) – são instituições manicomiais, asilares, violentas e desumanas. Apesar de todos os avanços da luta antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica brasileira, a existência das CT’s nos convoca à luta constante, uma vez que os manicômios ainda não são instituições superadas. Segundo Costa (2023), as CTs reúnem quatro instituições fundantes da nossa sociedade: a igreja, a prisão, o manicômio e a senzala. Isso posto, podemos compreender que nas Comunidades Terapêuticas se expressa a síntese das violências que estruturam o Brasil, evidenciando as contradições do capitalismo, do patriarcado e do racismo.
O grupo de pesquisa Psicologia e Ladinidades, da Universidade de Brasília, lançou o Observatório de Violências das CTs, no qual, apenas no ano de 2023, foram registradas 251 violações de Direitos Humanos em Comunidades Terapêuticas no país, como maus-tratos, privação de liberdade, trabalho análogo à escravidão, tortura, lesão corporal, estupro, homofobia, entre outros. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) também denuncia há anos as violações de direitos humanos que ocorrem nessas instituições, segundo relatório publicado em 2017. Cabe destacar que não se trata “apenas” de CTs irregulares, nem de casos isolados: o que os dados revelam é que toda CT é violenta, porque não há como ser diferente, a violência está na essência dessa forma de instituição e de seus princípios manicomiais.
A luta contra as Comunidades Terapêuticas é, sobretudo, uma luta da juventude da classe trabalhadora brasileira. São os jovens trabalhadores, em especial a juventude negra, os que mais sofrem com o avanço do conservadorismo, do fundamentalismo religioso e da violência policial. Durante o governo Bolsonaro, houve uma reformulação da política sobre drogas, que passou a ser uma política “antidrogas”. Com isso, as CTs ganharam centralidade no “cuidado” e na “atenção” às demandas relacionadas ao uso de álcool e outras drogas, reforçando um viés moralista e criminalizante. Isso não é à toa: trata-se de um projeto de extermínio da juventude negra e periférica, que criminaliza, violenta, aprisiona e mata jovens diariamente. Além disso, as CTs têm se tornado uma arma política nas mãos da extrema-direita, que, com o uso da força e da violência, se aproveita da precarização das instituições públicas para enriquecer e ganhar poder.
Em janeiro de 2023, no primeiro ano da administração do presidente Lula, foi criado o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas (DACT), no Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), pelo Decreto n.º 11.392. Uma grande derrota para o campo da saúde mental, álcool e outras drogas; uma derrota para a saúde pública e um ataque direto ao povo brasileiro. É lamentável que um governo que se diz aliado do povo destine verba pública a instituições de violência. Os recursos que deveriam fortalecer os serviços públicos de base territorial e comunitária, como os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), vêm sendo desviados para as CTs em volumes cada vez maiores. O que deveria financiar cuidado em liberdade hoje sustenta o encarceramento mascarado de terapia. Isso significa que, com o financiamento público e a regulamentação das CTs por parte do Estado, as violências cometidas por essas instituições passam a ser também violências estatais.
Como se não bastasse, os ataques aos princípios da Reforma Psiquiátrica vêm em avalanche. A senadora Damares Alves (Republicanos) propôs sustar os efeitos da Resolução n.º 249 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que proibia o acolhimento de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas, uma medida que violava os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mesmo diante das denúncias de pesquisadores/as, trabalhadores/as e usuários/as, em 3 de setembro deste ano a Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado aprovou o decreto e derrubou a resolução do Conanda. Somado a isso, acompanhamos a aprovação do Projeto de Lei n.º 1.473/2025, que amplia o tempo máximo de internação de adolescentes que cometeram ato infracional para cinco anos, podendo chegar até dez, o que representa mais um ataque ao ECA e um retrocesso na política socioeducativa brasileira.
Quem são os adolescentes e jovens encarcerados, violentados e mortos pela bala da PM? Quando afirmamos que a luta contra as Comunidades Terapêuticas é uma luta da juventude brasileira, é porque entendemos que elas representam um ataque direto à vida de jovens pretos e pobres. Elas servem ao sistema que visa o lucro, o enriquecimento de ladrões da fé, de políticos e milicianos. E quando um debate sério sobre drogas, que centralize o cuidado e a saúde, se torna um empecilho para esses interesses, sabemos que eles não hesitam em sujar as mãos de sangue para levar seu projeto adiante.
Do lado de cá, nós defendemos a vida, a saúde e o cuidado em liberdade. A nossa luta é por moradia, terra, renda, trabalho, lazer, cultura e vida digna para a juventude da classe trabalhadora brasileira. Por isso, somos contra as Comunidades Terapêuticas. Todo e qualquer manicômio disfarçado de cuidado deve ser derrubado.
Nenhum passo atrás!
Referências
COSTA, Pedro Henrique Antunes da. Comunidades terapêuticas no Distrito Federal: “controle” social e saqueio do fundo público. Revista de Políticas Públicas, v. 27, n. 1, p. 341-360, 17 dez. 2023. DOI: 10.18764/2178-2865.v27n1.2023.20. Disponível em:https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/21849
Saúde Mental & Militância no DF. Observatório de Violências das CTs. Brasília: Saúde Mental & Militância no DF. Disponível em: https://www.saudementaldf.com/observatorio.
SANTOS, Deivisson; STEFANELLO, Sabrina. Outra saúde e Abrasco: adolescentes em CTs — tragédia anunciada. Abrasco. Disponível em: https://abrasco.org.br/outra-saude-e-abrasco-adolescentes-em-cts-tragedia-anunciada-por-deivisson-santos-e-sabrina-stefanello/.
Moema Fiuza, psicóloga, especialista em saúde coletiva e militante do Levante Popular da Juventude