A emergência de múltiplas identidades e a luta contra as opressões parecem ser tendências crescentes entre grupos engajados na construção de um mundo mais justo. Nos referimos à pulverização de movimentos e coletivos de mulheres, LGBTs, transexuais, cicloativistas, antirracistas, ecologistas, dentre tantos outros que vemos por aí. Pela sua importância, é urgente que este fenômeno seja visto a partir de um olhar crítico, que procure observar suas oportunidades e perigos.
O surgimento de movimentos desse tipo não é um acontecimento novo. O que torna peculiar o atual momento é a multiplicação de causas, a pulverização de coletivos e a intensidade do processo, bem como a diversificação teórica que fundamenta os seus debates. Sem dúvidas, podemos afirmar que esta tendência está relacionada às mudanças de uma época definida como “pós-modernidade” ou “modernidade líquida”.
Evidentemente que essas múltiplas identidades, movimentos e pautas têm potencial para fortalecer a luta social como um todo. Por um lado, elas nos ajudam a superar uma visão homogeneizante a respeito da classe trabalhadora, levando-nos a perceber que os trabalhadores têm gênero, orientação sexual, cor de pele, preconceitos, sentimentos e expectativas muito mais variadas do que se acreditava. Nesse sentido elas têm uma dimensão importante na afirmação da diversidade humana. Por outro lado, essas novas identidades e causas podem fortalecer a luta como um todo na medida em que cada uma dessas pautas se tornem novas frentes de luta onde possamos combater os valores conservadores da ordem dominante.
No entanto, para além dessas oportunidades, não devemos deixar passar despercebidos os riscos que acompanham a tendência atual. Em primeiro lugar, é visível que um desses riscos é a perda de uma perspectiva estrutural sobre as pautas em questão. Ao desvincularmos problemas como a destruição ambiental, a opressão racial, a violência contra as mulheres, a transfobia da forma como a sociedade é estruturada como um todo, dos valores que foram impostos historicamente pela classe dominante e seu modo de agir, corremos um sério risco de tornarmos completamente ineficazes as nossas lutas. Este caminho é inevitavelmente seguido quando desvinculamos essas pautas da dinâmica da luta entre as classes na nossa sociedade.
Uma das consequências comuns desse esvaziamento é que, ainda que a causa da luta seja justa, cada um acabe buscando livrar-se da “sua opressão”, enxergando-se como um indivíduo que sofre uma opressão difusa, sem centro, que está em todos os lugares e que, por fim, é vista como um problema completamente individualizado tanto em relação a quem a sofre quanto em relação a quem a exerce. A superação da opressão acaba por tornar-se também um processo individual, e não mais social, e a perspectiva de luta torna-se tão fragmentada e subjetiva quanto ineficaz.
Um segundo risco é ignorarmos as forças de cooptação exercidas pelo mercado em cada uma dessas pautas. O mercado é um fator fortíssimo para desvirtuar causas e identidades e o exemplo histórico mais conhecido foi o que ocorreu com o movimento “hippie” e com a contracultura nos anos 1960. A moda é um dos principais mecanismos dessa façanha mercadológica. Mais recentemente, a formulação da ideia de “tribo” serviu para o mercado esterilizar e tornar lucrativos os movimentos de contestação. A partir daí, seria um erro ignorar que todo e qualquer movimento contemporâneo está sujeito a essas formas de deturpação.
Nesse sentido, entendemos que é fundamental que cada um dos coletivos que buscam a transformação da sociedade façam uma reflexão séria sobre essas questões. Uma sugestão que talvez nos ajude a não nos perdermos no caminho é a de sempre buscarmos aliar as nossas lutas específicas à luta mais ampla por igualdade entre os seres humanos. Afinal, a busca por igualdade é o único princípio que, se seguido com coerência, não pode ser aceito pelo sistema, uma vez que o sistema se funda na desigualdade. O princípio da igualdade nos afasta dos perigos do individualismo e do desejo de, na luta contra as opressões, acabarmos almejando ser, inconscientemente, como os nossos dominadores. Mais do que isso, a igualdade é o único princípio que pode apontar para a realização da diversidade humana, uma vez que nada daquilo que nos torna diferentes como humanos sugere, de longe, qualquer dominação natural ou desigualdade. A desigualdade deturpa a diversidade humana, fazendo dela critério para hierarquias de exploração e opressão; a igualdade, muito pelo contrário, é o reconhecimento de que na nossa diversidade, somos humanamente iguais por direito natural.