Vem de longe (e vai mais longe) os passos que resistem e constroem a luta pela visibilidade do amor entre as mulheres. Essa estrada é longa, perpassada por várias histórias pouco conhecidas, fragmentadas, de vestígios presentes na linha que costura, pois não há registro ou está escondido. É proibido, relegado como sem importância, como anônimo, contada por corpos que não são neutros. Nesse sentido, esse texto é um esforço de sistematizar um pouco da história, de afirmar os fragmentos como um todo de um canto que soa forte, entoado por muitas antes de nós. Reafirmamos neste mês que essa luta não é individual ou pela expressão tão somente da liberdade de uma identidade. Apresenta a força coletiva de um projeto, em que existimos, resistimos, e lutamos. Na tentativa de contar a história que a história não conta, apresenta-se em “Hasteemos a Bandeira Colorida” (2018) a reflexão sobre “Patriarcado Heterossexista e a Resistência Lésbica no Movimento Feminista”. As companheiras Larisse Rodrigues, Jéssica Batista e Janine Oliveira descrevem e aprofundam questões latentes, à partir do método materialista histórico dialético.
As lésbicas sempre existiram no mundo, haja visto a Ilha de Lesbos, onde viveu Safo, a primeira lésbica.
“Apesar de ter sido às vezes descrita como a décima Musa, Safo foi uma mulher mortal e não uma divindade. Tudo indica que viveu na principal cidade da Ilha de Lesbos, Mitilene, na Grécia, nas últimas décadas do século VII a.C. e primeiras décadas do século VI a.C. e há indícios de seu exílio por volta de 590 a.C. na Sicília, mas não sabemos exatamente o porquê (provavelmente motivos políticos).” (Hoki, 2020)
Safo era poeta e foi autora dos primeiros escritos de autoria feminina na tradição ocidental, ela cantava sobre o amor entre mulheres e o termo lésbica advém dessa referência.
Nas terras brasileiras, as práticas lesbianas sempre existiram. Um exemplo é trazido pelo cronista português Pero de Magalhães Gândavo, ao descrever o que as tropas colonialistas viram ao chegar ao Brasil:
“Algumas índias há entre os Tupinambá que não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão, ainda que por isso as matem. Elas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados, da mesma maneira que os machos, e vão à guerra com os seus arcos e flechas, e à caça, perseverando sempre na companhia dos homens. Cada uma tem mulher que a serve, e que lhe faz de comer e com quem diz que é casada. E assim se comunicam como marido e mulher” (Mott, 1987)
O processo de colonização no Brasil tem raízes fundantes no racismo, na violência e dominação que tem também cunho lesbofóbico, à medida em que foi construída pela marca rasgada do estupro corretivo às lésbicas, tendo a maior parte dos dados sobre a existência de lésbicas ligados a visitas feitas pela Inquisição Portuguesa, que conduziu entrevistas a mulheres na Bahia e em Pernambuco durante o século XVI. O “homossexualismo” era (e foi até 1990) considerado doença, além de um pecado terrível, podendo acarretar castigos severos. Sendo um dos casos mais destacados o de Felipa de Sousa, condenada à prisão e ao açoite por sua relação com Paula de Siqueira.
A primeira publicação da temática lésbica com alcance nacional é feita por Cassandra Rios em 1948, com a obra “A Volúpia do Pecado”. Mas quando dizemos do debate sobre o lesbianismo nas organizações do Brasil, datamos de 1979. Quando algumas mulheres se somam ao grupo SOMOS — primeiro grupo homossexual do país — e, provocadas pela invisibilidade e silenciamento, conformam um sub grupo: o Grupo Lésbico Feminista (LF), que posteriormente se retirou do SOMOS para fundar o GALF (Grupo de Ação Lésbico Feminista). Os percalços se davam no movimento LGBT e também no movimento de mulheres. O movimento lésbico se pautava no feminismo para apontar o direito ao prazer e a sexualidade. Wittig (1980) discute que as lésbicas não eram vistas como mulheres pelas heterrosexuais, por recusarem o enquadramento à heteronormatividade, colocando em cheque as categorias “homem” e “mulher”. A primeira publicação lésbica o jornal “ChanaComChana”, cumpriu um importante papel ao trazer pautas essenciais sobre discriminação e violência, além de divulgar atividades e a existência lésbica em meio a ditadura.
A “Operação Sapatão” comandada pelo delegado Richetti, ocorreu em 1980 e consistiu no ataque a bares frequentados por lésbicas, como Ferro’s, Último Tango, Canapé e Cachação, todos na Rua Martinho Prado, em São Paulo. Em 1983 ocorreu o chamado “Stonewall brasileiro”, em que a violência policial expulsou lésbicas do Ferro’s Bar — bar sustentado pela presença de mulheres homossexuais — devido a panfletagem do jornal ChanaComChana. As mulheres do GALF organizaram uma intervenção no local no dia 19 de agosto junto a aliados, o que ficou oficializado como o Dia do Orgulho Lésbico.
Paremos um pouco a linha histórica para costurar uma reflexão acerca do apagamento lésbico, nos apoiando em Rich: “as lésbicas têm sido historicamente destituídas de sua existência política através de sua ‘inclusão’ como versão feminina da homossexualidade masculina” (2010). Este é um exemplo ocorrido pela tentativa de impedimento da participação das lésbicas no II e III Congressos da Mulher Paulista. Ora, se a estrutura patriarcal-racista-capitalista nos amarra em um nó para que seja retirado o acesso ao conhecimento e para que negras e lésbicas sejam propositalmente esquecidas, o que temos visto é a tentativa de se rejeitar o amor entre as mulheres para mantê-las dentro dos limites sexuais masculinos, sendo “o reforço da heterossexualidade para as mulheres como um meio de assegurar o direito masculino de acesso físico, econômico e emocional a elas.” (Rich, 2010). Nesta relação dominação-exploração do patriarcado, a hierarquização dos homens sobre as mulheres é explicitada também por Audre Lorde ao dizer da “supressão do erótico como fonte de poder e informação em nossas vidas.” Ela diz:
“Reconhecer o poder do erótico em nossas vidas pode nos dar a energia necessária pra fazer mudanças genuínas em nosso mundo, mais que meramente estabelecer uma mudança de personagens no mesmo drama tedioso. Pois não só tocamos nossa fonte mais profundamente criativa, mas fazemos o que é fêmeo e auto-afirmativo frente a uma sociedade racista, patriarcal e anti-erótica.” (Lorde, 1984)
A lógica da relação entre as mulheres estabelecida na sociedade é calcada na competição e na exclusão, na invisibilidade. A feminilidade reserva um local de fragilidade e de controle sobre as mulheres, perpassando uma ideia de que quem não performa este padrão é determinada como desviante, e inúmeras vezes caracterizada como homem trans. Entretanto, a existência lésbica é bem diferente da existência trans e tem suas peculiaridades, de forma que esta constatação confirma o apagamento lésbico e o não reconhecimento que muitas vezes nos atravessa. O sistema político da heterossexualidade “vai além de práticas sexuais ou estereótipos de feminilidade ou masculinidade: ele é parte fundamental do patriarcado, pois constrói as necessárias ‘diferenças’ entre o ser e o ser mulher” (Rodrigues et al., 2018). Soma-se a esta leitura a não humanização do negro, que reserva às lésbica negras um lugar de descaracterização enquanto sujeitos. Nesse sentido, se mostra importante reafirmar que a existência lésbica é coletiva e política. Calçar os sapatões, juntar os pés descalços, para fortalecer os passos na caminhada para a liberdade.
O debate sobre a realidade lésbica deve, em sua essência, trabalhar a discussão do nó patriarcal-racista-capitalista. As mulheres negras são as mais exploradas no sistema de dominação patriarcal racista, em um processo histórico em que “o povo negro foi empurrado para a marginalidade, expropriado do direito à educação,saúde, moradia, lazer, sobrevivendo da exploração da sua força de trabalho nos empregos secundarizados e subalternizados, ganhando os piores salários, em condições insalubres” (Pereira e Roseno, 2018). O racismo cerceia desde a infância normatizando estruturalmente os corpos. Sendo assim, as mulheres negras não feminilizadas somam as maiores mortes por lesbocídio. Como no caso de Luana Barbosa, espancada e assassinada por policiais em 2016, em Ribeirão Preto (SP), após se recusar a ser revistada por policias masculinos e exigir a presença de uma policial feminina.
Em cada canto do país, os fragmentos se multiplicam. Em 1985 se coloca pela primeira vez o tema lesbianismo no III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe, em São Paulo. Contudo, ainda assim as pautas se distanciavam e não acumulavam em estratégias para combater a lesbofobia. Assim sendo, em 1996 floresce o I SENALE (Seminário Nacional de Lésbicas), no Rio de Janeiro, com cerca de 100 participantes. A partir daí ficou sendo o dia 29 de agosto o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. Tal como semente que o vento leva, as organizações de lésbicas se espalham e há uma grande participação na construção das paradas LGBTs. A invisibilização nestes espaços era e ainda é latente, levando à construção em algumas capitais do país, na década de 2000, de Caminhadas pela Visibilidade das Mulheres Lésbicas e Bissexuais.
Ao longo dos anos as lutas tiveram foco em agendas governamentais, discussões como a cidadania homossexual e o combate à homofobia, garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, reconhecimento da família e da maternidade homoafetiva, acesso a saúde e capacitação de profissionais para as especificidades da área. Com o fortalecimento do neoliberalismo e políticas que derrubavam diretamente direitos da classe trabalhadora, o movimento se volta por uma estrada pela sobrevivência. Neste período surgem algumas organizações de lésbicas, como a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) — em 2003 no Fórum Social Mundial —, a Articulação Brasileira de Lésbicas (ALB) em 2004, e a Associação de Lésbicas do Estado de Minas Gerais (ALEM) em 1997.
Com a vitória de governos progressistas do PT, em 2004 há a incorporação, no Plano Plurianual do Governo Federal, o Programa Brasil Sem Homofobia — o qual foi posteriormente vetado pela Presidenta Dilma Rousseff — , as demandas se expandem para reivindicações no âmbito do trabalho, da família, da saúde, da educação, espaços em que população homoafetiva é, na maioria dos casos, excluída e/ou violentada. Algumas conquistas podem ser apontadas, tal como o Dossiê de Saúde das Mulheres Lésbicas, elaborado pela Rede Feminista de Saúde em 2006. Também neste ano a Lei Maria da Penha, que trata da violência contra a mulher, é promulgada no país, reconhecendo o relacionamento homoafetivo. Mas a marca do apagamento lésbico é presente. Por vários eixos, por várias áreas, por várias mortes, por vários silêncios.
“O que posso lhes dizer, senão a verdade? Não temos uma história. Nem sequer somos visíveis umas às outras. Muitas artistas famosas do século 20 são lésbicas, mas, se são famosas como artistas, nunca se menciona que são lésbicas ou como isso pode afetar a vida, a obra ou os processos de trabalho delas.” (Harmony, 2019)
A lista se estende e seria muito papel, bem utilizado no caso, se fosse pra dizer das artistas lésbicas pelo Brasil. CITAR ALGUNS NOMES? Elas constroem a resistência cotidiana ao dizer do amor, ao pintar a afetividade, ao cantar a vida, ao filmar a história. Mas o que se encontra quando se busca — tente fazer uma pesquisa — é uma gama gigante de pornografia, de violência, de morte. Porque a mulher deve estar a serviço do homem, deve servir ao seu prazer, afinal é porque não “pegou” direito. Os dados de lesbocídio são recentes, o primeiro Dossiê do Lesbocídio no Brasil revela que entre 2000 e 2017, foram registrados 180 homicídios de lésbicas. No entanto, os anos mais recentes concentram a maior parte das mortes. Somente entre 2014 e 2017, foram registrados 126 assassinatos no país. Em sua maioria, de mulheres negras. Ainda assim a polícia tenta esconder sua vinculação na matança da LGBTfobia — que é majoritariamente de pessoas trans — conectando-a ao tráfico de drogas, ou o que mais for possível. A violência contra as mulheres se dá principalmente por homens, conhecidos, no espaço do privado, com o objetivo de corrigir, de controlar, de nos eliminar. A juventude LGBT também morre questões psíquicas: indica-se que tem 3 vezes mais chance de cometerem suicídio que a juventude heterossexual e cisgênera.
O contexto atual do isolamento social acresce a essa situação de violência uma enxurrada de medo e angústia. Se a maior parte dos casos ocorre dentro de casa, quando não se pode sair, a relação de conflito em que muitas passam na família se intensifica. Além disso, a pandemia coloca em cheque às lésbicas trabalhadoras, a relação de ficar em casa e perder o emprego sem ter condições de pagar as contas, ou sair para trabalhar e correr o risco de ser contaminada. Caminhamos para 6 meses de pandemia mundial e, no Brasil, as vidas perdidas passam a mais de 100 mil, sendo a classe trabalhadora e as pessoas negras a maioria dessas vítimas. Em diversas cidades, a Campanha Periferia Viva, protagonizada por mulheres e negros, prova que a solidariedade constrói direitos e salva vidas. O povo brasileiro que sempre sobreviveu, segue fazendo o contorno da sobrevivência.
Na saúde o trajeto é ainda mais liso, tão liso que se desliza, no plástico — plástico filme, indicado para as relações sexuais, já que o preservativo feminino é feito para relações com pênis — e não há sequer o reconhecimento do sexo entre mulheres. Resquício que se observa também no julgamento de sodomia no Brasil Colonial, tendo em vista que as práticas entre mulheres era anulada “porque não tinham falo, as mulheres por si só seriam incapazes de praticar “o gravíssimo crime de sodomia”. (Lopes, 2016). Há uma inviabilização da sexualidade e das práticas sexuais das mulheres com vulva fortalece diversos mitos que impactam fortemente na vida das mulheres. Como exemplo, a negação da disseminação de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) por sexo entre vulvas. Os profissionais de saúde não são preparados em sua formação para tratar da sexualidade das mulheres lésbicas e bissexuais. Importante pontuar também, que “a prática de homens trans com vulva é diferente em sexualidades, práticas sexuais e questões de identidade, que não são as mesmas das mulheres lésbicas e bissexuais com vulva” (Sartor, 2019). Atualmente há uma cartilha, disponível online, a “Velcro Seguro” que aborda essa temática.
A derrota de uma estratégia de poder sofrida pela esquerda, tem reflexo na retirada de direitos básicos, ínfimos. O impedimento do debate da sexualidade na escolas, o aumento de conflitos por terra, de perseguições à militantes de direitos humanos, da violência nas favelas, amplia a hegemonia de um projeto de morte, de homens brancos, de aniquilamento da classe trabalhadora. Que querem tombar e incendiar a história.
Ainda em meio a tantos caminhões nessa estrada, a lesbofobia se fortalece no neofascismo e nele encontra terreno fértil. Ele é o nosso inimigo. O desgoverno Bolsonaro, o fundamentalismo religioso que nos ataca, tenta nos apagar ainda mais, nos destruir, nos empurrar pro armário, queimar nossas bandeiras. Mas contamos a história que não querem contar, quebramos o armário pra não mais voltar, somos fermento na luta por uma sociedade livre, em que as cercas não nos privem, onde o povo sorri pelas ruas, lambuzando seus corpos na alegria de existir, hasteando as bandeiras coloridas.
Esse povo é cheio de sapatão.
Naquela noite
Mariana atravessou a mesa
me beijou e disse:
vai, Cecília! ser fancha na vida.
a sociedade coíbe mulheres
que amam outras mulheres.
Aquela noite talvez fosse tarde,
não houvesse tantas cervejas.
Minha cabeça vertiginosa cheia de imagens:
meninas verdes púrpuras vermelhas.
pra que tantas lesbianas, minha Deusa?
Amazonas das Sete Lanças, Cecília Floresta
Referências:
HOKI, Leiner. Sapatonas do mundo, uni-vos. Dissertação de mestrado Belas Artes da UFMG. Belo Horizonte. 2020.
LOPES, Kaique. Paula de Sequeira Inquisição e Lesbianismo na Bahia Quinhentista. Dossiê História e Gênero. Revista Cantareira — Edição 24 — jan jun. 2016. Acesso em: https://periodicos.uff.br/cantareira/article/viewFile/27845/16252
LORDE, Audre. In Textos escolhidos de Audre Lorde, Zine. Heretica edi es lesbofeministas independentes. Acesso: https://apoiamutua.milharal.org/files/2014/01/AUDRE-LORDE-leitura.pdf
MOTT, Luiz. O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre, Editora Mercado Aberto, 1987. Acesso em: https://historiahoje.com/as-lesbicas-na-historia-do-brasil/
PEREIRA, Maysa Mathias Alves. ROSENO, Andreia. Reflexões sobre as relações étnico/raciais e diversidade sexual e de gênero. In: Hasteemos a bandeira Colorida. Expressão Popular. São Paulo. 2018
RICH, Adrienne. Heterossexualidade Compulsória e a Existência Lésbica. Bagoas. Trad. Carlos Guilherme do Valle. n.5. Rio Grande do Norte: UFRN. 2010. Acesso em: https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309
RODRIGUES, Larisse. BATISTA, Jéssica Juliana. OLIVEIRA, Janine. Patriarcado Heterossexista e Resistência Lésbica na Pauta do Movimento Feminista. In: Hasteemos a Bandeira Colorida. Expressão Popular. São Paulo. 2018
WITTIG, Monique. The Straight Mind. Feminist Issues, n.1.1980.