Sem mulher não há socialismo,
e avançar com o feminismo é necessário para a revolução.
A origem da opressão vivida pelas mulheres está intrinsecamente vinculada ao surgimento da propriedade privada e do estado. Engels, em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, conta sobre como o patriarcado, através das instituições que o representa, fundamenta seu direito de legislar a respeito do corpo das mulheres.
O capitalismo nasce apropriando-se, a fim de estruturar seu desenvolvimento, de bases existentes em modos de produção anteriores. O modo de produção a que estamos inseridas hoje incorpora as estruturas patriarcal e racista pré-existentes, utilizando-as e agudizando-as.
A partir da apropriação da divisão sexual do trabalho dá-se a feminilização, bem como a naturalização, do processo de reprodução da vida como função inata pertencente às mulheres. Indo além na análise, a divisão sexual do trabalho atribuiu às mulheres as tarefas reprodutivas, de produção da vida e as tarefas de sua manutenção, como o cuidado da família. Ela instituiu o destino das mulheres ao retirar delas o controle de si, tornando assim, a mulher escrava do desejo do homem e mero instrumento de procriação. É a partir dessa concepção que as sociedades modernas têm legislado a respeito do direito ou da proibição ao aborto.
Com o surgimento do estado liberal, foi criada a ideia de uma pactuação coletiva no qual todos os indivíduos poderiam exercer seus direitos através de contratos sociais, era o que garantiria, em tese, o direito à igualdade de todos e todas. No entanto, Carole Pateman trás luz ao contrato social como uma questão também sexual, que na verdade institui o contrário da igualdade, institucionaliza a exclusão e a dominação das mulheres.
Diferente do patriarcado tradicional, em que o pai era a principal figura política, que tinha a capacidade decisória sobre os demais membros da família, o patriarcado moderno de hoje é fraternal, contratual e estruturante da sociedade capitalista.
O pacto hoje, portanto, se dá nessa relação entre Estado Liberal e homens, em que se caracteriza sendo um contrato sexual ao mesmo tempo que social: é social no sentido de patriarcal – isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres – e também sexual no sentido do estabelecimento sistemático de um acesso dos homens aos corpos das mulheres.
Mas porque esse pacto ocorre? Por que vivemos em uma sociedade capitalista, em que, segundo Karl Marx, o Estado é um instrumento de dominação da burguesia que garante a exploração de classe e a concentração de riquezas. E a mulher é um sujeito fundamental nessa produção de riquezas, haja visto que é ela a responsável pela produção da força de trabalho ativa e também a sobrante.
Essa força de trabalho sobrante, chama-se exército industrial de reserva para Marx, e é uma categoria fundamental para entender a exploração nas relações de trabalho. Se temos uma longa fila de pessoas para trabalhar, o capitalista pode pagar pouco. Caso o operário ache ruim, o burguês facilmente o demite e contrata outro no lugar, haja visto que existe um exército sobrante de “reserva” para ser empregado. Por isso, controlar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é uma necessidade para o capitalismo, porque é o controle também da produção de seres humanos, e portanto, da força de trabalho.
O Estado, ao ser mais um instrumento de dominação da burguesia, institui a criminalização do aborto como forma de garantia da dominação sobre a reprodução da força de trabalho e consequentemente a cominação dos corpos. Cabe ressaltar conjuntamente a isto, em países cuja função no sistema mundo de produção está diretamente associada, também, à produção de mão de obra precarizada, as leis sobre aborto tendem a ser mais rigorosas que em países chamados de desenvolvidos.
Apresentar essa organização do sistema capitalista e o papel da divisão sexual do trabalho e do controle da sexualidade feminina, ilustra o que Heleieth Saffioti chama de nó indissociável entre capitalismo, patriarcado e racismo. Mas onde o racismo entra nisso? Mulheres negras sofrem muito mais ao abortar, são negligenciadas pelo serviço público de saúde e realizam os abortos mais inseguros. Mas por que controlar os corpos de mulheres negras é tão importante para os capitalistas? Por que, desde a formação social brasileira até hoje, negros e negras continuam a receber menos que pessoas brancas, cerca de 14%, segundo pesquisa recente. Nesse sentido, o racismo produz um rebaixamento salarial ainda maior da massa proletária.
Além disso, ao olharmos para o Brasil, vemos marcas ainda mais agudas da ação estatal, norteada pela lógica do nó desenhada por Saffioti, em relação aos direitos reprodutivos. Ao mesmo tempo em que temos uma rígida legislação que restringe o direito de acesso ao aborto, é rastreavel na histórias recente, como apontou a CPI da laqueadura involuntária, ocorrida ainda nos anos 1990, a ação do Estado brasileiro, a partir da demanda de controle populacional de países subdesenvolvidos vinda dos EUA, que realizou o procedimento de laqueadura em mulheres pobres, majoritariamente negras, sem que estas mulheres consentissem.
Em 2024, o direito ao aborto legal no Brasil é concedido sob apenas três circunstâncias: em decorrência de estupro, se a gestação apresentar risco de vida a quem gesta e em caso de anencefalia fetal. Cabe ressaltar ainda sobre a dificuldade de realização do procedimento mesmo em casos previstos por lei, por falta de profissionais que aceitem fazer o procedimento e pelo pequeno número de hospitais que os realizam.
Mesmo sendo extremamente restrita, a legislação sobre o tema vem sendo alvo de inúmeros ataques ao longo dos últimos anos, especialmente com o conservadorismo ganhando ainda mais espaço e com o avanço da extrema direita no Brasil. Entretanto, o movimento feminista e, especialmente as mulheres feministas, seguem respondendo aos ataques e resistindo à ofensiva, protagonizando importantes lutas nas ruas, mesmo quando esta pauta está secundarizada por partes da esquerda que olham para isso como mera cortina de fumaça. A partir desta reflexão, faz-se gritante a necessidade de voltarmos a nos posicionar com firmeza contra as ameaças à já insuficiente legislação atual sobre o aborto e pautar a luta pela ampliação dos direitos reprodutivos, além de avançar na construção do feminismo nas nossas fileiras.
Retomar os estudos e a incorporação da teoria política feminista e centralizar o patriarcado, parte fundante do capitalismo racista que ordena o mundo em que vivemos, como motor da opressão das mulheres e da diversidade sexual, é fundamental para o avanço da luta revolucionária. Precisamos ter a clareza que o ataque aos direitos reprodutivos significa o avanço do programa político dos nossos inimigos, e um passo a mais no fortalecimento das bases que estruturam o funcionamento do próprio capitalismo.
Nós, mulheres do Levante Popular da Juventude, lutamos pela legalização do aborto no Brasil. Seremos incansáveis na luta pela vida das mulheres e não recuaremos um passo até que esse direito seja conquistado.